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Cultura e entretenimento

Abandono. Por Neiff Satte Alam

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Ali estava ele, sujo, maltrapilho, em completo abandono. Sabe-se lá que história poderia contar dos dias de grandiosidade absoluta em que dominava o ambiente de alguma sala de estar. Aquele enorme sofá jazia solitário em uma calçada frente a um terreno baldio.

O Andarilho, pintura de Sid René

Fiquei a imaginar o dia em que foi escolhido pela família inteira para ocupar o espaço principal em frente a uma televisão de 29 polegadas. Quantos filmes seus donos viram, confortavelmente sentados, após o jantar e com todos os cuidados para não manchar o fino tecido que o cobria. Sabe-se lá se não foi palco de romances que terminaram “em algum casamento” ou, pior, “terminaram com algum casamento”.

Era noite, apenas uma lâmpada de um poste da iluminação pública mostrava os contornos envelhecidos e mal conservados, o abandono do sofá só não era maior em razão dos olhares de piedade dos transeuntes que, como eu, pensavam nos seus dias de glória. Sabe-se lá quantas vezes seus antigos donos desfrutaram de cumplicidade ao assistirem programas políticos e ouvirem afirmativas importantes de como fariam determinadas coisas ou como não fariam outras, por exemplo, prometendo cuidar dos idosos aposentados, dando-lhes um final de vida digno – mais digno que o final de vida daquele sofá.

Algumas vezes, solitário, sem ninguém a usufruir do assento, ainda novo e inteiro, era obrigado a ver programas de televisão de discutível qualidade, mas que ficavam a invadir sua confortável solidão, um descanso para suas molas.

Ah! Tinham também cães e gatos que se divertiam afiando unhas e garras no pano ainda com cheiro de novo, mas que estava destinado a ter irremediáveis rupturas nos fios perfeitamente tecidos e nódoas de substâncias mal cheirosas que destoavam dos desenhos e cores, outrora lindas, harmonicamente dispostas e bem ao gosto dos donos.

Foi neste momento de reflexão que percebi, junto a uma mola projetada por um buraco no assento, uma folha de jornal, não tão velha quanto o sofá, que, em letras “garrafais”, traduzia bem o sentimento dos transeuntes, talvez ainda em seus subconscientes, dizia: “O projeto que regulariza os proventos dos aposentados é barrado pelo governo”.

É isto, aquele sofá foi novo, bonito, útil e promoveu momentos importantes e positivos, mas, como os aposentados, cessada sua utilidade, foi abandonado em uma calçada qualquer da vida, expondo sua fragilidade e “desutilidade” a olhos que não querem ver, a ouvidos que não querem ouvir e tendo como lamento apenas o ranger das molas e, como memória, folhas de jornais acidentalmente presas a estas.

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© Neiff Satte Alam é professor Universitário Aposentado – UFPEL Biólogo e Especialista em Informática na Educação

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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