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Brasil e mundo

A vocação humana para a catequese

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O ser humano tem uma vocação atávica para a catequese. Seja por bem, tentando convencer com argumentos, seja batendo de porta em porta no domingo de manhã, domingo após domingo, até vencer pela exaustão; seja desovando clichês cada vez que a oportunidade se apresenta.

O paraíso há de ser um mundo em que não haja escolhas – logo, não existam erros, inexistam perdas. Ninguém há de se questionar sobre ter se casado com a pessoa errada, porque não haveria outro cônjuge possível. Nem outra profissão, outro modelo de celular, outra cor de vestido. O paraíso não tem bifurcação – logo, dispensa as placas de retorno.

A opção do outro é sempre um questionamento à nossa. Eu vou à Bola Preta, você vai ao Boitatá. E se o Boitatá bombar e na Bola Preta rolar tiro, porrada e bomba? Era melhor que houvesse um só bloco naquele dia, e só fosse permitida uma fantasia, para eu não me sentir chinfrim demais ou demasiadamente sem noção. Era preciso que não houvesse, no mundo, o diabo da escolha, a besta fera da comparação.

Só isso explica a compulsão de tanta gente com a conversão alheia. Não para que o outro fique melhor, mas para que o proselitista se sinta menos mal com suas escolhas.

Não faltam heterossexuais empenhados em salvar gays e lésbicas. Afinal, gays não sabem o que estão perdendo, e as lésbicas apenas não encontraram o homem certo, certo? Na outra ponta, também não faltam gays e lésbicas achando que não há heterossexual, mas gay mal cantado ou mulher que ainda não experimentou transar com quem sabe exatamente onde ficam e como funcionam certas partes da anatomia. Ou seja, todo mundo é hétero, só precisa vencer o trauma – e todo mundo é homo, só falta um empurrãozinho.

Com os ateus não seria diferente. O ateu sabe que Deus existe, e está apenas fazendo charme. É claro que Deus existe! Olha o pôr do sol, o sorriso de uma criança, o milagre de uma flor! Como é que pode um ateu ser escritor, cantor, fotógrafo, se todos os dons são dádivas divinas? Não faz sentido um ateu gente boa (do tipo que dá bom dia, paga imposto, joga lixo na lixeira) porque os religiosos (assim como os esquerdistas) detêm o monopólio da bondade. Fora de Deus só há o satanismo, as seitas com bebês sacrificados e as laives sertanejas.

A prova disso – todo mundo sabe – é que não há ateus em avião caindo. Podem reparar: no chequim dos aeroportos há uma triagem secreta, e só é permitido aos ateus o embarque em voos sem chance de queda. Se você vai viajar, certifique-se que haja um ateu a bordo. Isso é sinal de que o voo será seguro. Havendo agnósticos, são altas as chances de turbulência (agnósticos precisam ser postos à prova). Sem ninguém com pinta de ateu (ou seja, sem camisetas vermelhas com pentagrama, tatuagens de tridente subindo pelo pescoço ou livro de São Cipriano a tiracolo), pule fora enquanto é tempo.

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Sim, pode dizer “vai com Deus” (que significa “vá em paz, que nenhum mal te aconteça”). Mas evite elogios do tipo “Difícil acreditar que uma pessoa com tanta sensibilidade se defina como ateu”.

Esse elogio equivale a “É tão inteligente que nem parece mulher”, “É incrível que uma pessoa tão limpa, tão cuidadosa, tão educada, seja preta”, “Quando é que eu poderia imaginar que um homem tão corajoso, tão respeitável, fosse gay?” ou “Apesar de judeu, ele é super honesto, super confiável.” Acredite: cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. E não perca seu tempo tentando convencer a namorar no pedalinho quem prefere um 69 na montanha russa.

Eduardo Affonso

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Brasil e mundo

A liberdade sagrada das redes

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Noutro dia escrevi um texto sobre a cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem, responsabilizando parcialmente as novas tecnologias de comunicação. Disse: “Se por um lado as tecnologias deram voz à sociedade, por outro, nos têm distraído da concretude do mundo, de interação mais hostil, levando-nos a viver em mundos paralelos”. E: “No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades, mas sim no mundo virtual, um refúgio, retroalimentado pelo algoritmo, onde não há frustrações, mas sim gratificações instantâneas”. Bem, esse é um lado da questão. E não é novo.

Desde Freud se sabe que, diante do trauma, a criança dissocia-se para á-lo, refugiando-se na neurose, uma estratégia de defesa. Pois, assim como a criança abalada pelo trauma, as pessoas, diante das escalabrosidades do mundo concreto, fazem igual: elas podem se retirar para o mundo virtual, guardando, daquele, uma distância.

O outro lado da questão, o reverso da moeda, é que, sem as novas tecnologias de comunicação, a voz traumatizada da sociedade permaneceria atravessada na garganta, sem chance de extravasar-se.

A possibilidade de expressão liberou uma carga de justos ressentimentos contra os limites da política, as injustiças, o teatro social. De súbito, tivemos uma ideia do tamanho da insatisfação com os sistemas de vida, ando publicamente a protestar, em alguns casos chegando à revolução, como ocorreu na Primavera Árabe, onde as redes sociais cumpriram um papel fundamental.

Pois não é por outra razão que os donos do antigo mundo estão incomodados e querem controlar a liberdade de expressão, especialmente a velha imprensa, os monopólios empresariais, os sistemas políticos totalitários. Enfim, todos aqueles para quem a internet e as redes sociais ameaçam seu poder, ao por de pernas pro ar as certezas convenientes sobre as quais se assentaram.

Fato. As inovações desarranjam os mercados e os modos de vida. Toda inovação faz isso. É o preço do progresso. Mas, assim como é impossível voltar ao tempo do telégrafo (imagine o desespero nas Bolsas de Valores), é impensável retroagir ao mundo exclusivo da prensa de Gutenberg. Porque as descobertas, afinal, permitem avançar nos arranjos produtivos: propiciam economia de tempo, dinheiro e, no caso da comunicação, ampliam a liberdade, seu bem mais precioso. Pode-se dizer que não estávamos preparados para tanta liberdade súbita, e que venhamos, neste momento, usando-a “mal”. Contudo, parece razoável dizer que, à medida que o tempo e, estaremos mais e mais preparados para lidar com a liberdade e seus efeitos.

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Com todos os defeitos que a vida tem, é preferível mil vezes, ao controle da palavra, a liberdade de dizê-la. Quem pode afirmar (ou julgar) o que é verdadeiro e o que é falso, senão as pessoas mesmas, em última análise, de acordo com suas percepções e as pedras em seus sapatos? Pois hoje, depois de provarmos a liberdade trazida pelas novas tecnologias, mais do que nunca sabemos que a imprensa, em sua mediação da realidade, é falha, e como o é!

É interessante (e triste) ver como, após a criação da internet e das redes, grande parte da imprensa, ao perder o monopólio da verdade, se vêm tornando excessivamente opinativa e crítica das novas tecnologias. Deveria, sim, era aprimorar-se no trabalho para prestá-lo melhor. Acontece que — eis o ponto — como a velha imprensa não é livre de fato, como depende do financiador, muitas vezes de governos, ela vê nas novas tecnologias de ampla liberdade uma ameaça à velha cadeia de produção acostumada a filtrar o que valia ser dito, e o que não valia, em seu óbvio interesse, hoje nu, como o rei da história.

Além de tudo, há essa coisa interessante: a percepção. Para alguns pensadores do novo mundo, o que chamamos de realidade é uma simulação, no que concordo. Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros, paladares etc. não existem no mundo concreto (são imateriais), sendo portanto simulações percebidas pelos sentidos (pessoas veem cores em diferentes matizes, quando não divergentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado exclusivo dos nossos sentidos. Assim, a única coisa real seria a razão. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. “Penso, logo existo”.

Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos com que amos o mundo concreto, estando entrelaçados, não haveria diferença entre eles. Logo, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor. Eu acredito que é assim.

Uma vez provadas as inovações, não é possível retroagir. Podemos, isso sim, é refinar, em decorrência delas, o nosso comportamento.

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Vivendo em mundos paralelos

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Algo mudou na relação entre o jornalismo e os pelotenses. Até por volta de 2015, havia um marcado interesse nos assuntos da cidade. Um mero buraco, e nem precisava ser o negro, despertava vívida atenção. Agora já ninguém dá a mínima. Nem mesmo se o buraco for um rombo fruto de corrupção numa área de vida e morte, como a de saúde. O valor da notícia sofreu uma erosão nas percepções. Não é uma situação local, mas, arrisco dizer, do mundo.

Vem ocorrendo uma cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem. Um corte entre elas e a vida social. O espaço, que no ado era público, já hoje parece ser de ninguém.

A responsabilidade parcial disso parece, curiosamente, ser das novas tecnologias de comunicação. Se por um lado elas deram voz à sociedade como um todo, por outro, ao igualmente darem amplo o ao mundo virtual, elas nos têm distraído da concretude do mundo, de interação sempre mais hostil — distraído, enfim, da realidade mesma, propiciando que vivamos em mundos paralelos.

Outra razão é que, no essencial, nada muda em nossa realidade. Isso ficou mais evidente porque as redes sociais deram vazão, sem os filtros editoriais da imprensa, a um volume de problemas reais maior do que o que era noticiado. Se antes já havia demora nas soluções, essa percepção foi multiplicada pelo crescente número de denúncias feitas nas redes pelos próprios cidadãos. Os problemas que dizem respeito à coletividade se avolumam sem solução a contento, desconsolando e fatigando a vida.

Como a dinâmica da cidade (e da realidade) não responde como deveria, eis o ponto, estamos buscando reparações no ambiente virtual, sensitivamente mais recompensador, além de disponível na palma da mão.

No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades. Estamos habitando no mundo virtual, onde não há frustrações, mas sim gratificação instantânea. Andamos absortos demais em nossa vida. Abduzidos por temas de exclusivo interesse pessoal, retroalimentados minuto a minuto pelo algoritmo.

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Antes vivíamos num mundo de trocas diretas entre as pessoas. Hoje habitamos numa nuvem, no cyber-espaço. Andamos parecendo cada dia mais com Thomas Anderson, protagonista do filme Matrix. Conectado por cabos a um imenso sistema de computadores do futuro, ele vive literalmente em uma realidade paralela. Isso dá

Para complicar tudo, há pensadores para quem a realidade é uma simulação.

Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros etc. não existem no mundo concreto, mas são simulações percebidas pelo nosso corpo (pessoas veem as cores em diferentes tons, quando não em diferentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado dos nossos sentidos.

Assim, a única coisa real seria a razão, quer dizer, o modo como processamos aquelas percepções dos sentidos. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos que amos o concreto, não haveria diferença entre eles.

Segundo aqueles pensadores, como o mundo virtual está entrelaçado com o mundo concreto, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor.

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