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Cultura e entretenimento

Eduardo e a insônia. Por Eduardo Affonso

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Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar. Ficou deitado e viu que horas eram: 5 da madrugada.

Quando foi dormir, à 1h, o vizinho de baixo ainda tocava violão e cantava. Eu não sei parar de te olhar, não sei paraaaaaar de te olhar. Não bastasse ser 1h da madrugada, era Ana Carolina.

Eduardo precisava levantar cedo no dia seguinte para viajar. Mas às 8 da noite começara a festa no apartamento de baixo, e aí adeus, Corina. Tinha uma crônica para entregar no sábado, e não dava para escrever com uma festa estranha com gente esquisita bem abaixo dos seus pés, subindo pela varanda e entrando pela janela.

Às 10h abandonou a crônica sobre sonhos abandonados.

Às 11h, decidiu que não iria sublimar a irritação escrevendo sobre a etimologia dos palavrões que gostaria de proferir.

Às 11h30 ligou para a portaria e pediu a intervenção da istração do condomínio.

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À meia noite ligou de novo, para ser informado de que nada podia ser feito porque o vizinho disse que ia continuar a festa, e pronto. It’s Barra da Tijuca, man.

À meia noite e meia, Eduardo chutou o pau da barraca e chamou a polícia.

À 1h da manhã, tomou um zolpidem, enfiou plugues de cera nos ouvidos, fechou portas e janelas, ligou o ar no máximo e se meteu embaixo das cobertas – sem ter escrito a crônica e sem que a patrulhinha desse sinal de vida.

Às 5 da madrugada, tocou o despertador. Foi quando Eduardo abriu os olhos etc. Mas não teve jeito, senão se levantar.

A festa tinha acabado em algum momento entre a 1h e as 5h, porém o efeito do zolpidem ainda não. O que significa que o estearato de magnésio, o amidoglicolato de sódio, o dióxido de silício coloidal e o opadry branco se recusavam a dar os trâmites por findos.

Eduardo se arrastou para debaixo do chuveiro a fim de ativar os neurônios. Fez um café bem forte, catou na geladeira um pedaço de bolo de banana, ligou o computador, releu os textos esboçados na véspera e, meio zonzo, só pensava em voltar pra cama – mas se não entregasse a crônica nem chegasse a tempo em Juiz de Fora ele ia se ferrar.

Mesmo com o universo conspirando contra, veio mesmo, de repente, uma vontade de escrever sobre algo que não tivesse nada a ver com insônia, importunação, incivilidade ou ímpeto de cometer vizinhicídio.

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Precisava de um tema que o reconciliasse com a vontade de viver. Uma paixão, talvez. Mas aos 60 e lá vai fumo, já na prorrogação, a caminho dos pênaltis? Por que não? – pensou.  Bananeira que deu cacho ainda pode dar sombra. Uma sombra meia boca, mas pode.

Entupiu-se de cafeína e segurou legal mais essa barra pesada que lhe impam.

Não escreveu com o cérebro – onde a cafeína achou estranho, e melhor não comentar, mas tinha hemitartarato até no cerebelo. Escreveu fingindo ser outro – já sem sono, ainda com sonhos – e a crônica nasceu depois de uns goles de café a mais, mais ou menos quando os primeiros barulhos do dia vieram.

Escreveu como se acreditasse ser possível outro tipo de arritmia cardíaca. E quem um dia irá dizer que existe razão nas crônicas escritas pelo coração?

~

[Todos os personagens e situações reais são fictícios. Qualquer semelhança com cronistas homônimos e perrengues realmente acontecidos terá sido mera falta de imaginação.]

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Eduardo Affonso é colunista de O Globo e, a pedido nosso, autorizou o compartilhamento, aqui, de seus posts no facebook.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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