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Adolescência é competente, mas desonesta intelectualmente 594qi

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Aos poucos o impacto da minissérie inglesa Adolescência se vai esvaindo. No mundo moderno, produtos culturais são assim: depois de “causar”, logo seu impacto arrefece, substituído por outro produto. Digo assim, mas pode ser que me engane por um tempo extra, já que até intelectuais têm escrito coisas (absurdas) sobre a série, tratando a mentira que a história conta como se fosse realidade. Como se fosse um fenômeno do nosso tempo. Não é.

Vamos dizer a verdade. Os produtores foram desonestos, a começar da classificação da obra. Não é um Drama, como a venderam, mas sim Terror psicológico. Aí sim a história faz sentido. Foram desonestos também na escolha do título. Adolescência dá a entender que todos os adolescentes são íveis de virarem assassinos. Foram desonestos na abordagem, tocando deliberadamente o terror.

O diretor fez foi “apertar todos os gatilhos” que as famílias médias, ao menos europeias, têm pra mobilizar o alarme: o garoto é branco, é de classe média, a família é convencional, mora numa boa casa etc.

Resumindo: um garoto de 13 anos é preso acusado de matar uma colega de escola, supostamente por influência de uma “cultura de misoginia juvenil”. De onde vem essa misoginia? Na série, ela decorre de uma comunidade virtual intitulada Incel, formada por adolescentes que não conseguem encontrar parceiras românticas ou sexuais. O garoto tem uma autoimagem negativa. Mesmo não sendo feio, acha-se feio, e está sob influência daquela cultura e comunidade de excluídos das possibilidades românticas.

Uma boa obra de ficção mente para expressar uma verdade. Adolescência, porém, mente para expressar uma mentira. Pior: tenta fazer ar a mentira como verdade.

Considerando-a como Terror psicológico, os realizadores foram competentes. A minissérie é hipnótica. Cada um dos quatro capítulos é um plano-sequência. Após começar a gravar, o diretor só vai gritar “corta” uma hora depois. Tudo funciona com impressionante precisão suíça. Apesar das deslealdades da produção, o espectador se sente magnetizado.

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As primeiras impressões na imprensa foram de que a história é “um alerta sobre a nocividade das redes sociais, que difundem teses em caóticas que adolescentes acreditariam, desencaminhando-os”. Pais ficaram em polvorosa diante da sugestão de que seus filhos, através delas, podem igualmente perderem-se no crime, acabar de alguma forma com a própria vida. O terror psicológico atingiu seu objetivo.

Ora, na vida real, um adolescente rejeitado e que se sente inferiorizado tem um estoque de libido e a investe em algo. Não fica solta como a do garoto da série. Se não encontra objeto concreto (no caso, uma namorada), investe numa paixão platônica. Além disso, encontra outros canais para drenar suas frustrações, dedicando-se ao esporte, à leitura, aos estudos, às viagens, aos amigos etc. Por mais inábil que seja sexualmente, o adolescente sempre fantasia que vai encontrar alguém. Mais: todo adolescente se fecha no quarto, se afasta dos pais, começa a guardar segredos. Faz parte do crescimento.

Por mais que demonizemos as redes sociais, elas não mudam a índole. Apenas dão vazão ao que existe. Ninguém se torna assassino por culpa das redes ou de agressões psicológicas, mas sim por um conjunto de fatores que até a ciência forense tem dificuldade de explicar.

O garoto da série tem família estruturada. O pai trabalha, a mãe é zelosa. Estuda, tem confortos no lar, um quarto acolhedor, decorado. Não é um favelado. Não vive em meio à violência extrema que se vê nos subúrbios do Brasil, contra a qual se pode de repente, por autodefesa, “explodir”.

Os produtores da série exageraram na dose, aparentemente com o objetivo de “causar”. Para convencer do assassinato na história, este teria de ser motivado por uma razão que até poderia ter algo a ver com redes sociais, misoginia ou qualquer dos demais motivos sugeridos, mas nunca chega a se explicar por eles.

A série começa a tocar o terror desde a primeira cena, com uma ação irreal. Policiais vestindo balaclavas e armas pesadas arrombam a casa da família do garoto como se fossem prender um terrorista. Não convence. A prisão poderia se dar de dia, quando o garoto saísse pra ir à escola, por exemplo.

Se quiseram audiência, conseguiram. Mas, valeu a pena demonizar os adolescentes? Apavorar os pais, para quem o maior medo é que os filhos se percam, confundam e desistam da vida?

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Adolescência nem mesmo é entretenimento. Ainda que fosse vendida honestamente como Terror psicológico, não teria graça nenhuma. O fato é que prende a atenção. Todos os atores são ótimos, e o menino protagonista, Owen Cooper, é um assombro. Nunca havia entrado num set. É de ficar imaginando os desempenhos que ainda oferecerá se continuar no trabalho de ator.

Adolescência | Trailer oficial | Netflix

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