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Nomes de filmes dão ótimos títulos para matérias jornalísticas. É um recurso de última hora, se as ideias não vêm. Quando eu trabalhava como editor-executivo de uma agência de notícias em Brasília, preparamos uma grande reportagem sobre os suplementos infantis dos 50 jornais mais importantes do País. Com base em uma pesquisa, concluímos que eles eram ruins. Os leitores infantis não vinham merecendo a devida atenção dos editores.

Numa reunião discutíamos que título dar à reportagem, que ocuparia 20 páginas de uma revista e era a chamada principal da capa. O título não vinha. Até que, em certo momento, sugeri: “Esqueceram de mim”. As discussões acabaram na hora e fiquei orgulhoso nesse dia. Agora tento o contrário. A partir do título do filme Ainda estou aqui, tento dizer algo na forma de um artigo, com receio de parecer desdenhoso da criação alheia.

Desde antes da ditadura, tanta coisa de ruim, como a desigualdade social, ainda está aqui, que, tomado pelo desânimo, não sei por onde começar. Talvez um dos primeiros sinais de que começamos a envelhecer seja a sensação de que falar ou fechar a boca dá na mesma.

Os problemas não só permanecem. Eles se adensam, sem que encontremos um consenso mínimo para avançar. Os suplementos infantis sumiram, os jornais em papel vêm sumindo. Até a seriedade da maioria dos jornalistas sumiu; agora, mais do que nunca, é um show, financiado nos veículos tradicionais por publicidade de governos — dinheiro público para dizer “a verdade”. Lembra da comemoração na redação da Globo quando Lula foi eleito?

Felizmente, com a internet e as redes sociais, a oferta de informação e de contrapontos explodiu, assim como implodiu a credibilidade da imprensa, que nunca esteve tão desfigurada quanto agora. São estilhaços pra todo lado, sem perspectiva de paz.

O Brasil virou o que sempre foi. A “justiça” é o que temos visto. Os adoradores de Lula e do PT os acham o máximo, um pessoal do “bem”, preocupado com os pobres; depois de tudo o que aconteceu (e acontece), é incompreensível. Agora celebram o filme de Walter Salles, um filme bom como filme, um simples filme, como uma vitória nacional, esquecendo o outro lado da história. Multidões à esquerda pularam nas ruas por um prêmio da indústria do cinema mais poderosa e capitalista do mundo, como uma redenção.

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Por óbvio o desaparecimento de Rubens Paiva, que intermediava correspondências de exilados, foi uma barbaridade. A opressão é uma barbaridade. Não há nada que justifique a tortura e os assassinatos. Nada. Por outro lado o filme não toca no fato de que grupos resistentes que lutavam contra a ditadura militar eram stalinistas e trotskistas e queriam implantar a ditadura do proletariado no Brasil, como itiu publicamente Fernando Gabeira. Ele treinou guerrilha em Cuba junto com outros com aquele fim, voltou clandestino, ajudou a sequestrar o embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick, levou tiro, foi preso, torturado e despachado para o exílio. Hoje trabalha como comentarista para a tevê Globo; é preciso reforçar a aposentadoria.

Quando se trata de política, há a tendência entre grande parte dos artistas brasileiros de ver só um lado da questão. A história, porém, sempre tem no mínimo dois lados. Ainda estou aqui é um bom filme, mas não possui a complexidade dos conflitos e das contradições que uma obra artística exige para ser profunda — abranger a natureza humana em suas múltiplas facetas.

Já a complexidade está presente no filme O que é isso, companheiro? — baseado no livro homônimo de Gabeira. Um dos torturadores, um sujeito com a mulher grávida, tem problemas de consciência por torturar, mas se sente obrigado, como funcionário de estado, a obedecer para manter o emprego e a família, prestes a crescer. No cativeiro, numa noite o embaixador acha que será morto e, assustado, defeca. Envergonhado, conta o que ocorreu. O guerrilheiro de vigília o consola, depois o guia pelo braço até o banheiro (Elbrick está com os olhos vendados), para que ele se lave; sozinho na privada, o embaixador chora. É uma das cenas mais bonitas do filme.

Esses ódios todos que vemos nas redes decorrem em grande parte de uma saturação, às vezes até de nós mesmos, por nossa impotência diante do absurdo, quando não por questões de ordem emocional e de desordem cognitiva. No Brasil, tudo fica para amanhã, inclusive a lógica. As pessoas parecem estar esbravejando para que se lembrem de que elas foram esquecidas.

***

PS: Walter Salles, também diretor do filme Central do Brasil, um belíssimo trabalho, é herdeiro de banqueiro. O Itaú, do qual a família Salles é uma das principais acionistas, floresceu na ditadura e, atualmente, cobra juros estratosféricos em cartão de crédito, cheque especial etc. O Itaú explorou o País desde o governo Fernando Henrique Cardoso, com os juros altos dos bancos — um assalto oficializado há 30 anos. Curioso, não? Como disse o mais fino do Supremo, jeitoso com as palavras: “Perdeu, mané”.

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