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Opinião

O que esperar de um político?

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Mesmo que me esforce, nem sempre compreendo. Por exemplo, a reverência pelas figuras de autoridade política. Há quem defenda essas cegamente. Tirando os que ganham com isso, compreensíveis, a maioria nada ganha, a não ser o prazer com o sentimento de bando. O tal do “pertencimento”.

Não lembro quem falou, mas me parece correto quando se diz que, antes de ser político, o homem é um ser social. Posso entender isso, ao menos até o ponto em que não preciso sujar as mãos.

Houve um prefeito de quem se diz que, chamado incessantemente de ladrão, sem o ser, um dia se cansou de ser honesto e começou a roubar. Ninguém acredita num homem honesto. Isso é uma das coisas mais perversas da vida. Mas é assim. Se ninguém acredita, o que ganha a pessoa que tenta ser correta, mesmo sendo imperfeita?

O pouco que convivi com figuras de autoridade, quando assessorei um senador, quando fui ghost writer de um ministro no governo FHC, me serviu para entender que são iguais a nós, com a desvantagem de que dependem da aprovação pública, mesmo não tendo, no íntimo, o menor respeito pelo público, pois sabem o quanto pode ser volúvel. O que noto é que, em certo ponto, todo político se perde, em algum nível, de si mesmo. Deixa de ser um ser humano e a a ser um ator.

Um dos “políticos” com quem mais simpatizo deixou a política e voltou a ser jornalista.

Na ditadura, Fernando Gabeira largou o emprego no Jornal do Brasil, enfiou um 38 na cintura, treinou guerrilha em Cuba, voltou ao Brasil querendo fazer revolução. Participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick (foto no alto), conviveu com ele no cativeiro. Acabou baleado, preso, torturado, banido. Voltou na anistia um democrata, um pacifista, além de um crítico dos dogmas da esquerda, da qual se afastou. Foi deputado por alguns mandatos, cansou de ser (não com essas palavras, mas concluiu basicamente que “não valia o esforço”) e, no fim, voltou a ser jornalista.

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Gabeira, em seu julgamento no Tribunal Militar

Em seus comentários na Globo, é hoje um velhinho aparentemente tranquilo, meio cínico, mas sem ter perdido o humor. Às vezes sua gata Renata atrapalha suas entradas ao vivo, caminhando em frente da câmera. Outro dia Renata o arranhou e ele a afastou com um safanão, um gesto instintivo de defesa.

No revezamento da vigília ao embaixador, quando o mantinham em cativeiro, os sequestradores entravam no quarto com um capuz parecido com aquelas máscaras antigas de carnaval, com dois furos para os olhos. Máscaras escuras, de carrascos. No filme sobre o sequestro, mostram que Gabeira fazia diferente.

Ele achava que Elbrick não merecia reter a visão de um mascarado com o revólver pousado no regaço, sentado numa cadeira. Na sua vez de vigília, oferecia ao embaixador um óculos grande com o espaço das lentes coberto com uma proteção preta. Pousado o apetrecho, ele fazia do cativo literalmente um cego. E então ele, Gabeira, retirava a sua máscara e conversava com Elbrick, num nível menos desigual.

Gabeira via Elbrick, que não podia ver o primeiro nem identificá-lo ao natural, mas, ao menos, não era obrigado a olhar para um “monstro”. Esse tipo de elegância é talvez o máximo das possibilidades humanas, a coisa mais valiosa que se possa almejar entre as pessoas. Apesar das diferenças, manter o respeito humano, o que é, também, uma tentativa de obter o respeito do outro por nós. Quando o outro não entende isso, infelizmente responde-se na mesma moeda.

***

* Gabeira, de bigode, em seu julgamento no Tribunal Militar.

* Elbrick, com a testa ferida por uma coronhada de revólver, desferida no dia de seu sequestro. Libertado em troca da soltura de guerrilheiros presos, ele falou bem dos sequestradores e o governo americano o levou de volta aos Estados Unidos e o aposentou. Muitos anos depois, a filha de Elbrick veio ao Brasil se encontrar com Gabeira, querendo conhecer melhor seu pai. Saber quem ele foi nos dias de cativeiro. Proibido pelo Departamento de Estado, Gabeira, embora tenha tentado, nunca pode entrar nos Estados Unidos.

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Jornalista e escritor. Editor do Amigos de Pelotas. Ex Senado, MEC e Correio Braziliense. Foi editor-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Atuou como consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Uma vez ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, é autor dos livros Onde tudo isso vai parar e O fator animal, publicados pela Editora Lumina, de Porto Alegre. Em São Paulo, foi editor free-lancer na Editora Abril.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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