Por Augusto de Franco
Golpe, golpe, golpe. Tudo para o PT é golpe: a prisão de seus dirigentes, incluindo ex presidentes e tesoureiros no mensalão e no petrolão foi golpe, o impeachment da Dilma foi golpe, as condenações e a prisão de Lula foram golpes.
Antes dos bolsonaristas, os tucanos eram golpistas. Qualquer oposição é golpe. Segundo o PT estamos condenados a viver sempre na iminência de um golpe, a menos quando a imensa maioria da população esteja decidida a votar no PT para sempre.
Já estou cansado desse assunto. Há um ano – ainda no calor dos acontecimentos infelizes de 8 de janeiro – publiquei o artigo abaixo.
NO BOLSONARISMO TUDO É FAKE, ATÉ O GOLPE
Augusto de Franco, Dagobah (22/01/2023)
Desculpem, mas é preciso introduzir os adultos nas salas da análise política. Comecemos com três constatações:
1 – Não houve golpe de Estado no 8 de janeiro. Houve uma movimentação golpista de vândalos bolsonaristas enganados com a fake news de que, se quebrassem tudo, haveria insurreição popular e as forças armadas interviriam para recolocar Bolsonaro no poder.
2 – De qualquer modo, com ou sem vandalismo, com ou sem terrorismo, com ou sem mortos, não haveria golpe de Estado à moda antiga no 8 de janeiro porque os bolsonaristas não tinham força político-militar para tanto.
3 – O golpe de Estado de Bolsonaro, com tanques nas ruas, à moda antiga, sempre foi retórico. No máximo era uma tentativa do tipo “se colar, colou”. O verdadeiro golpe que Bolsonaro aplicou na democracia começou em 2019, com a contínua e progressiva erosão das nossas instituições.
Comentemos.
Não houve insurreição alguma no dia 8. Alguém já viu insurreição popular na qual as pessoas não saem às ruas por sua própria vontade (espontâneamente ou estimuladas, convocadas ou ordenadas, arrebanhadas ou não), caminhando com suas próprias pernas, mas têm que ser levadas de ônibus de outros lugares distantes?
Não houve nem sombra de um swarming, como o que aconteceu em junho de 2013 (em Brasília e em mais de 500 cidades). Nada parecido, nem de longe, com a manifestação de 30 de junho do mesmo ano, em todas as cidades do Egito, que resultaram na deposição do jihadista da Irmandade Muçulmana eleito, Mohamed Morsi.
Nem houve intervenção militar alguma. No máximo vacilação, leniência e conivência de elementos das forças armadas e das polícias militares e, talvez, de outras autoridades, nomeadas ou eleitas (a ver).
Se os vândalos bolsonaristas estivessem realmente convencidos de que seriam, eles mesmos, os encarregados de tomar o poder pela violência, por que foram desarmados para a manifestação do dia 8 de janeiro (em sua quase totalidade)?
Ao que tudo indica o vandalismo do dia 8 foi um movimento de luta interna dentro das forças armadas e policiais: para convencer partes das tropas mais legalistas de que deveriam intervir para restabelecer a ordem.
Não era um movimento para tomar o poder insurrecionalmente, embora isso sempre possa acontecer nas circunstâncias nebulosas que se configuram quando há questionamento aberto de um regime político.
Para além do fato de que não houve repressão policial, como se explica que, num movimento insurrecional de tomada do poder pela força, não tenha havido mortos ou feridos? As manifestações populares (de esquerda, aliás) contra o governo de Dina Boluarte, no Peru, em poucos dias, já produziram várias dezenas de mortos.
Ao que tudo indica, entre os verdadeiros golpistas estão os membros das forças armadas e policiais que estimularam ou deixaram correr solto o vandalismo ou o quebra-quebra (real e simbólico) para convencer seus pares de que deveriam intervir para restabelecer a ordem, além, é claro, de todos que apostaram nesse caminho, seja arquitetando, convocando, financiando ou apoiando logisticamente a demonstração golpista. Sim, foi mais uma demonstração para detonar alguma série de eventos disruptivos do que uma intentona para consumar a disrupção.
Compara-se o nosso 8 de janeiro (de 2022) com o 6 de janeiro (de 2021) americano, na invasão do Capitólio. Nos Estados Unidos foi uma tentativa real de impedir a proclamação da vitória de Biden (houve mortes e, segundo a investigação do Congresso, intenção de assassinato do vice Mike Pence e da presidente da Câmara, Nancy Pelosi caso se opusessem ao golpe de Estado). Ou seja, havia um gancho institucional para impedir a posse do novo presidente eleito (Joe Biden).
O 8 de janeiro brasileiro, embora de forte apelo midiático, dada a ocupação e depredação das sedes dos três poderes, não teve nada disso. Foi feita num domingo, com os palácios vazios, quando não estava acontecendo nada relevante (nenhuma decisão estava para ser tomada), por um contingente relativamente pequeno e desarmado, que teria sido facilmente contido por uma força policial normal. Ademais, o novo presidente eleito (Lula) já estava empossado e governando. Teria de ser deposto com a quebra explícita da Constituição – o que só poderia ocorrer se houvesse uma sublevação militar ou quartelada.
O 8 de janeiro também não foi um ato terrorista – diferentemente das tentativas, feitas em outros dias, de explodir um caminhão de combustível nas imediações do aeroporto de Brasília (ou no próprio saguão do aeroporto) ou da derrubada de torres de transmissão de energia.
Uma manifestação de vândalos desarmados, num domingo, quebrando móveis, vidraças e obras de arte de palácios vazios, não tem o efeito de infundir o terror na população. Conhecem-se muitas pessoas que ficaram horrorizadas com o vandalismo generalizado, mas quase nenhuma que ficou aterrorizada com o episódio. Como alguém já disse, foi horrorismo, não terrorismo.
Os que articularam o dia 8, se quisessem enveredar pelo terrorismo como forma principal de luta, não teriam dificuldades organizacionais, financeiras e materiais de planejar a explosão de uma série de bombas, bloqueando ruas, estradas, portos e aeroportos e outros equipamentos públicos – aí sim infundindo o terror nas populações da capital e de várias cidades importantes do país.
Se quisessem paralisar o país teriam articulado um bloqueio geral com os caminhoneiros, que nenhuma polícia rodoviária, mesmo sob o comando de um senhor da guerra petista, conseguiria desmanchar (bastava atravessar os caminhões nas duas vias das estradas e ir embora com a chave). Terroristas também não teriam dificuldade de efetuar assassinatos de civis inocentes a esmo, usando snipers ou simples atiradores amadores (armamento para isso não falta, depois da política irresponsável de Bolsonaro com os Cacs).
Isso não significa que alguns grupos bolsonaristas mais radicalizados – de forma descentralizada – não tenham planejado ou até tentado praticar atos terroristas em outros dias. Mas no dia 8 de janeiro esses atos não ocorreram, revelando que não era essa a orientação para aquele específico evento golpista.
O fato de a manifestação ter sido golpista e possa ser encarada como tentativa de golpe de Estado não significa que essa tentativa fosse crível ou que tenha havido golpe de Estado, só não se consumando, para usar uma expressão do ministro da Justiça, pela graça de Deus. Como disse um analista adulto, o Marcus André Melo, na Folha de São Paulo do último 16 de janeiro:
“É certo que a argumentação dos analistas [Anne Applebaum, Ross Douthat e Yascha Mounk, segundo o qual os insurgentes brasileiros “pareciam querer fazer cosplay dos rebeldes americanos”] é um corretivo para a visão rival de que estaríamos diante de uma ameaça crível de golpe.
Claro, para parte da malta ensandecida a tomada de poder era o objetivo, mas o caráter demencial do intento não pode escamotear seu caráter quixotesco. “L’armata Brancaleone”, desarmada e sem evidência de apoio efetivo das Forças Armadas ou liderança militar relevante, deparou com o único desenlace possível: a prisão dos envolvidos. Isso vale, mutatis mutandis, para os EUA. Sim, lá ocorreu interrupção de sessão de ratificação das eleições; aqui, tumulto após a posse”.
Além da erosão das instituições (o novo tipo de golpe do século 21), houve também outras tentativas não-críveis de golpe de Bolsonaro à moda antiga, não apenas uma, não apenas a do dia 8. A luta de Bolsonaro foi nas mídias sociais, nas ruas e, usando o aparato do governo, nas instituições que queria controlar ou derruir.
Fora das “quatro linhas da Constituição”, a disputa principal, entretanto, foi dentro da forças armadas. Tudo que ele fez foi para convencer os militares de que deveriam impor a sua ordem à sociedade. Conclusão: como não venceu essa disputa, Bolsonaro nunca teve força político-militar suficiente para dar um golpe à moda antiga, com tanques nas ruas, dissolução do Congresso, prisão dos ministros do STF et coetera.
Diante de tal impossibilidade, Bolsonaro usou a ameaça de golpe (à moda antiga mesmo) como retórica eleitoral, para manter seu contingente coeso e aguerrido visando a vitória nas urnas de 2022. E aí, sim, quase conseguiu, em razão, sobretudo, do imenso antipetismo generalizado na sociedade brasileira (que só houve, é óbvio, porque houve petismo).
Venceu o pleito de 2022 em todas as regiões do país, menos em uma (o Nordeste – o que é espantoso). Angariou mais votos do primeiro para o segundo turno do que Lula (o que chega também a ser espantoso). Isso não se explica, como repetem os petistas que acham que somos idiotas, pelo uso da máquina, pelo valor majorado do Auxílio Brasil (em relação ao antigo Bolsa Família), pelas interrupções do tráfego executadas pela Polícia Rodoviária Federal para que eleitores lulistas não chegassem a tempo nas sessões eleitorais e pelo emprego legítimo ou ilegítimo de outros recursos disponíveis a quem está no governo. Ora, em eleições adas o PT também ameaçou os miseráveis com a suspensão do Bolsa Família caso não votassem nos candidatos governistas. Ou isso também já foi esquecido?
O fato é que, a despeito de tudo isso, está se vincando uma narrativa, mais ou menos coerente, ainda que falsa, de que o governo Lula enfrentou uma tentativa real golpe de Estado articulada por terroristas. Grandes redes de televisão não levaram nem dois minutos para caracterizar os manifestantes golpistas do dia 8 como terroristas, o que revela um perigoso conluio com o governo para difundir a mesma narrativa.
O que aconteceu no dia 8 foi gravíssimo, foi crime e todos os responsáveis devem ser punidos, em estrita observância ao devido processo legal. Nossas leis, porém, são suficientes para punir os violadores das leis (se não se quiser condená-los por terrorismo).
Não é necessário forçar a barra para dizer que, num estado de exceção como o que supostamente vivemos, são necessárias medidas de exceção. Não estamos em estado de exceção. Não é preciso dar carta branca a ninguém para defender a ordem democrática. Como já escrevi em outro artigo, nas democracias nenhuma pessoa pode ter carta branca. Só a Carta é soberana. E essa carta, por isso mesmo, está escrita e não em branco.
Se enveredarmos por esse caminho só pioraremos as coisas. Lula e o PT precisam descer do palanque e governar, não estimular o conflito bipolar, pacificar em vez de fazer guerra (o que nada tem a ver com anistiar criminosos) e valorizar as oposições democráticas que surgirem como elementos indispensáveis à boa governabilidade democrática.