Confissões de um cadáver adiado, 11º romance do escritor e jornalista Luiz Carlos Freitas (Bestiário, de Porto Alegre), é, como se depreende, a narrativa de um homem que sobreviveu. Nas 233 páginas da obra, Freitas (foto) embaralha realidade e ficção para narrar uma história que, embora seja uma terceira, inventada pela imaginação, soa do começo ao fim como a história real, verídica, da vida de Lucas Madeira Portugal, o narrador-personagem, alter ego do autor, de menino à maturidade.
Lucas e demais personagens do livro são gente como a gente. Possuem as ambiguidades que caracterizam os seres humanos, persuadindo-nos a acreditar na verossimilhança do relato. A linha que separa Freitas e Lucas é tênue. Assim como o primeiro, Lucas é escritor e jornalista. Ambos enfrentaram asperezas tremendas. Tal proximidade, um gênero literário conhecido como autoficção, e o uso da primeira pessoa, conferem ao texto, de saída, um apelo ao voyeur que existe em nós.
A identificação com o narrado é permanente – o leitor se vê refletido, e vê aos seus, em toda a sua humanidade.
O broto do livro veio de um dado ao qual todos estamos sujeitos: a doença e a ameaça de ponto final em uma vida. Contrariando presságios que o assombravam (o pai morrera cedo, da mesma doença), o autor, após uma série de provações, ao ponto de ter a vida desenganada, reagiu à sentença de morte e venceu o câncer. Feito isso, voltou ao princípio da vida pela memória, vestiu-se com a pele do narrador-personagem e retrilhou seu percurso, reconsiderando fatos, reconstituindo significados e, indo além, reconstruindo a sua história.
Lucas, como nós, é presa de circunstâncias aleatórias à sua vontade, realidades contra as quais, desde cedo, se vê desafiado a lidar para se haver consigo mesmo, para entender o que está fazendo no mundo.
O barro de que somos feitos é o mesmo do garoto Lucas. Um amalgama de perplexidades, medos, incompreensões, indignações, descobertas, e, também, de pequenas felicidades, momentos mágicos nos quais a paz retorna para reequilibrar as percepções e repor a confiança na vida. Em meio a espinhos, página a página, a ternura abre caminho.
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A personalidade do menino introvertido se vai edificando à força de estímulos expressionistas, de tintas fortes, provenientes de contingências que o obrigam a absorver um turbilhão de emoções que parecem excessivas e injustas. Sem saída, procura assimilar o ambiente que joga com ele, ando a jogar com aquele, em dupla mão.
Com suas dores e alegrias, o mundo familiar é instável. Em anéis, a instabilidade expande seu raio ao bairro em que vive, na periferia. O raio é mais amplo, se estende ao País e, mais longe, ao Globo. Lucas nasce pela época em que Getúlio Vargas se suicida com um tiro no coração. Logo viria a Guerra do Vietnã, crianças ardendo por Napalm, os tanques militares avançariam pelas estradas do Brasil para depor Jango. Em nenhum lugar a vida parecia fácil. O mundo vivia (vive) de sobressaltos.
Se a mãe é comiva, o pai de Lucas é difícil. Oscila entre rompantes e momentos de acalento. Trabalhador pouco instruído, ira livros, porém, e os adquire em sucessão. Por surpresa, compra ficção de qualidade, que não lê. Em casa, o menino Lucas se depara aqui e ali com romances de gente como Faulkner, Joyce, Wolf e começa a folheá-los. A vida não é como nos livros. Nos livros ela é melhor, mais rica. Lucas logo descobrirá.
O bairro onde o menino cresce é carente. Bairro dos Anos 60 de uma Pelotas que, aos olhos de hoje, parece remota. Um lugar onde, para se ter ideia da distância, os moradores se abasteciam de água numa bica pública. Uma longa fila de gente com vasilhas nas mãos: trabalhadores operários brancos e negros, donas de casa, gente humilde, com as quais Lucas se identificará e de quem, para sempre, se lembrará – com um ardor que moldará seu caráter, sua percepção da injustiça e que abalará sua fé em paraísos.
Descendente de portugueses que migraram para Pelotas na primeira metade do Século XX, Lucas carrega a marca dos anteados: saudades e angústias fluindo pelo sangue, impressas na alma, e a marca dos incitamentos que ao imigrante se impõem ainda mais penosos.
Os prazeres para o menino eram poucos e esparsos, o jogo de futebol, o cinema, os amigos e colegas de escola e, adiante, a literatura, que engolfaria tudo em sua vida, abduzindo-o em outros mundos, uma paixão devoradora que parece, no fundo, materializar o amor do filho pelo pai.
O pai de Lucas o leva ao cinema e se ausenta durante a sessão para resolver um assunto, avisando que virá buscá-lo quando o filme terminar. O menino assiste sozinho ao belíssimo filme Dr. Jivago, baseado em um romance do russo Pasternak, sobre um médico que aceita a revolução comunista, mesmo perdendo privilégios de classe, mas não abre mão de sua singularidade como indivíduo, evitando a massificação, atitude que, aliás, será a de Lucas.
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O pai, Joaquim, não é mau. Embora possa ser rude, intrigante, é capaz de generosidades – além de possuir bom gosto cultural, o que permanece um enigma para o filho, embora o enigma pareça se explicar pelo fato de que, para Joaquim, o conhecimento era a libertação. Conhecimento a que ele não teve o, mas que desejava aos filhos.
Homem de grande carga vital, como extravasa contradições, impressiona e intimida o menino. A relação entre os dois, sempre comovente, sem nunca soar piegas, beira por vezes o surreal. Joaquim mantém um cão de guarda preso numa corrente no pátio de casa. O adolescente Lucas vê nisso uma crueldade e provoca o pai a liberar o bicho, sem resultado. Adiante, reconsiderando a decisão, o pai solta Rex. Mas o cachorro, embora livre, não atravessa o portão da rua, permanece sem sair do pátio. É uma das imagens mais poderosas do relato, pois parece expressar uma verdade dolorida.
Escrito em jorro de consciência, Confissões tem uma fluência exuberante. O autor costura a linha narrativa em dois tempos, alternando memórias da infância e juventude com as do presente, enquanto o adulto Lucas enfrenta o calvário da doença até superá-la. Mesmo nos trechos líricos, o narrador controla a emoção com um olhar – acima de tudo – judicioso. É avaliador, intrusivo e implacável como, digamos, um Javert seria, do qual a memória nada parece esquecer, nenhum fato e seu signo parecem escapar.
Em seus embates com a realidade, o adolescente Lucas, que já havia descoberto a literatura em criança, ando a visitar dimensões além do universo que conhecia, convence-se de que ele próprio poderia criar mundos novos e, aos 17 anos, escreve seu primeiro romance, que guarda na gaveta. “A literatura me salvou”, diz o narrador. Nisso, corresponde ao papel daquela na cultura: preencher as insuficiências da vida com aquilo que nos falta. Nascia um escritor com a marca essencial: a insatisfação com a vida como ela é.
A memória em Lucas parece ser duas coisas ao mesmo tempo: um veneno do qual ele extraiu um antídoto e, também, uma arma, destinada à defesa da própria existência. Muito do que ele lembra não é prazeroso, mas já não dói. E, se dói, a dor foi assimilada, transformada pelo sentimento. Mesmo os momentos poéticos me doeram um pouco, porque é como se a beleza brotasse de pedras. É provável que muitos trechos toquem em espíritos sensíveis, o que, sempre esperamos, sejam muitos. Se chega a fazê-lo, porém, não é gratuito. Tem uma razão de ser, que, no autor, é a própria essência do material em que trabalhou durante um ano inteiro.
Para dizer o que pretende, o autor só poderia fazê-lo se nos contasse os crus da vida. Ele o faz por esse motivo: para nos dizer que, mesmo da crueza de circunstâncias adversas extremas, ainda assim, é possível encontrar belezas em nossa agem, maravilhamentos que, como resistem às agruras e as suplantam, até chegar à forma da arte, tornam-se ainda mais preciosos, pois refinam a nossa natureza naquilo que nos é um sedimento comum à espécie.
Lucas nunca descansa. Vasculha os eventos. Confronta-os e, depois, os reconsidera e realinha, num inventário que nos toca inclusive quando o narrador conta fatos engraçados, porque o humor provém de situações que, na mente do garoto Lucas, o desordenam, embaraçam e fazem, inevitavelmente, pensar. “É a vida!” – parece dizer.
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O menino Lucas vendeu laranjas, foi cobrador de ônibus. Calado, tímido, adiante na estrada, dedicou-se ao jornalismo, a dirigir uma redação de jornal e, concomitante, a escrever ficções. Foi capaz de erguer um céu só seu, cheio de palavras, onde encontrou a tradução para um espírito inconformado, mas resiliente. Felizmente, no fim, o autor coloca o caos em repouso. O desgarrado se incorpora à espécie.
Uma pequena sugestão, quem sabe, para a próxima tiragem de Confissões. Creio que não ficaria mal se, ao mármore que compõe a capa, se acrescentasse um pequeno ramo saindo da pedra rachada. E, brotando do ramo, uma folhinha verde. Brilhosa pela chuva.
Jornalista e escritor. Editor do Amigos de Pelotas. Ex Senado, MEC e Correio Braziliense. Foi editor-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Atuou como consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Uma vez ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, é autor dos livros Onde tudo isso vai parar e O fator animal, publicados pela Editora Lumina, de Porto Alegre. Em São Paulo, foi editor free-lancer na Editora Abril.
Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.
Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.
Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.
Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.
Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.
Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.
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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.
No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.
Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.
Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.
Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.
Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.
Como assim caos interior?
Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.
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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.
Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.
Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.
É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.