Conheci Luiz Carlos Marques Pinheiro mais ou menos há 10 anos. Ele me contou que escrevia crônicas sobre Pelotas, memórias do tempo que viveu aqui. Já há quase 50 anos morando em São Paulo, não esquecia Pelotas. Viajava sempre para cá. Um primo de Luiz, Francisco de Paula Marques Rodrigues, me contou que ele havia falecido e deixara um acervo de crônicas sobre a cidade que, na opinião dele, merecia ser mais amplamente divulgado. Interessei-me em publicar na forma original, conforme as memórias dele, memórias de décadas adas (RSA)Luiz Carlos e esposa
Ano 1958. Acredite quem quiser. Nas décadas de ’40 e ’50 não se ouvia falar de crime em Pelotas. Não havia. A cidade era absolutamente calma e tranqüila. Pra iniciar, não havia o crime de assalto, que é o mais comum nas grandes cidades. E não havendo assalto, não havia o roubo; somente o furto. O roubo é classificado como aquele cuja desapropriação envolve violência. O furto é subreptício.
O pelotense podia circular de carro a qualquer hora do dia ou da noite por toda a cidade, mesmo de madrugada, sem que lhe ocorresse a possibilidade de ser assaltado à mão armada por algum bandido. A tranqüilidade sempre foi total.
Não ava pela cabeça uma idéia tão estapafúrdia.
A gente saía dos bailes de madrugada e ia a pé pra casa, sem nenhuma preocupação. Nunca ou pela cabeça a hipótese de perigo. Assalto ao comércio, nunca se ouviu falar. Podia haver algum furto, noturno, mas assalto não. Mas mesmo o furto, não ocorria nas lojas comerciais. Os preferidos eram os armazéns.
Se for feita uma pesquisa na imprensa da época vai se encontrar raríssimos casos de uma loja comercial que tenha sido furtada à noite. E assaltada de dia, nunca!
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Agora, o ladrão que furta um armazém o que é que ele está querendo? Comida? Mesmo para vender era difícil. Quem iria comprar cereais de um miserável? Só aqueles poucos proprietários de vendinhas no extremo da periferia e que não se importavam que a mercadoria fosse roubada.
A expressão “ladrão pé-de-chinelo” retrata com fidelidade esse ladrão de Pelotas. É um pobre miserável, que nem sapato tem pra usar, e que rouba por sem-vergonhice. Esse era o ladrão de Pelotas, um safado! Esse tipo de ladrão também era chamado de “ladrão de galinha”. Adivinhem por quê?
Havia uma exceção: as bicicletas, que eram muito visadas. Porque era fácil. Era só montar e sumir … E, para vender também era muito fácil; nenhum comprador iria pedir nota de venda.
No alto verão as casas dormiam com as janelas da frente escancaradas … para ventilar.
Os guarda-noturno apitavam enquanto andavam pelas ruas, para avisar os ladrões que eles estavam por perto.
Pelotas era uma cidade muito ingênua e romântica, e não sabia … Os carros podiam dormir na rua, sem qualquer preocupação. Os ladrões preferiam roubar peças nas oficinas mecânicas, no meio da noite, que eram mais fáceis de vender.
Enfim, Pelotas era uma cidade praticamente sem crime. Bater na mulher não era crime. Ainda não havia a Lei Maria da Penha. As mulheres apanhavam e ficavam caladas.
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Os furtos eram tão insignificantes que em Pelotas não havia presídios. As penas resumiam-se a meses e eles ficavam na cadeia mesmo, ou no quartel da Brigada. Na hipótese de a Polícia se deparar com um bandido mesmo, um homicida, que demonstrasse periculosidade, ele era encaminhado imediatamente para a Casa e Detenção, em Porto Alegre.
Só para dar uma idéia do perfil desses ladrões – melhor chamados de meliantes
Certa vez, por volta de 1954, a nossa casa foi assaltada, na madrugada. Nós estávamos em férias na praia. Roubaram um rádio de cabeceira, um ventilador e um relógio cuco. Não é coisa de ladrão “pé-de-chinelo”?
Um tio meu tinha armazém na zona do Porto. Furtaram do armazém dele meio saco de feijão, umas latas de óleo, três garrafas de vinho e uma churrasqueira portátil.
Esse tipo de crime é de uma singeleza tal que eu me atreveria a aproximá-lo muito mais da contravenção.
O crime de homicídio, havia, mas somente em briga de boteco de periferia, depois de muitas “biritas”. E, um dado interessante, sempre por faca, nunca por revolver. Me parece que a faca é a arma preferida dos gaúchos … Mesmo assim, em Pelotas eram raros os casos de homicídio.
Agora, briga de faca no RS é outra coisa, é a mais comum, embora Pelotas não fosse das cidades mais violentas. Mas raramente terminava em morte. Quando eu digo isso, eu falo em termos gerais, na média do comportamento do povo. É claro que sempre vai haver um crime amoroso. Acontece em qualquer cidade do mundo. Mas não é suficiente para caracterizar o comportamento de uma população, nem para caracterizar uma época.
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É uma pena que não existissem estatísticas para confirmar o que eu digo. Mas uma pesquisa nos jornais da época, para quem se interessar, é suficiente. Ainda hoje, se for procurada na Internet a manchete “O crime que abalou Pelotas”, nada será encontrado…
A falta de notícia era tanta que o roubo de uma vaca, na periferia, era matéria para o Diário Popular.
Se eu tivesse que resumir em uma única palavra o perfil psicológico desse marginal pé de-chinelo eu diria: INGENUIDADE.
Ingenuidade é aquela característica tipicamente infantil, de quem ainda não tem idéia do que seja maldade, e que não compreende ainda o que seja “segundas intenções”.
Era tal o grau de ingenuidade e de falta de ambição, que os ladrões chegavam a arrombar os coletores de esmolas das igrejas, para roubar. Esses eram chamados “ratos de igreja”.
Eu tenho tentado entender porque Pelotas era uma cidade tão pacífica, em contraste com a grande maioria delas.
Várias idéias me am pela cabeça:
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Para mim, o ponto mais relevante é a formação familiar da classe pobre. Eu posso falar com alguma propriedade sobre isso porque a gente tinha empregadas, que moravam nas vilas, e que nos contavam parte da vida delas na comunidade.
Pelotas tinha várias periferias. Os bairros Fragata, Três Vendas, Areal e a Zona do Porto. Em todos esses bairros os pobres moravam nas periferias. Eu prefiro abordar a Zona do Porto que eu conheço melhor, porque morava na região. Era chamada de “Zona da Várzea” e “Várzea do Porto”.
A periferia da Várzea do Porto começava abaixo da rua Álvaro Chaves. Uma quadra abaixo já não havia calçamento de pedra nas ruas, eram ruas de terra. As casas eram de material nas duas primeiras quadras. A partir daí já eram de madeira, chamadas de chalés. E o padrão ia decaindo de nível à medida em que se afastavam da Álvaro Chaves. Umas dez quadras pra baixo, o padrão já era muito humilde.
O conjunto dessas ruas de terra e desses chalés era chamado de “vila”. A minha empregada se referia “lá na vila …”. A Várzea do Porto era composta por várias dessas vilas.
O estádio do Brasil também ficava na Várzea do Porto. As emissoras faziam referência ao “Clube da Várzea”.
Os terrenos mais próximos ao calçamento eram comprados. A partir de certo ponto eram terrenos baldios, que eram invadidos.
Diferentemente do que ocorria nas favelas do Rio de Janeiro, os chalés mantinham distância entre eles; não havia chalés grudados uns nos outros.
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Havia sempre um terreno à volta do chalé, que era chamado de “pátio”. Nesses pátios às vezes eram construídos dois chalés para a família, quando tinha mãe ou sogra, geralmente com filhas.
As vizinhas mais próximas não se tratavam pelo nome, mas por “vizinha”. Era vizinha pra cá,vizinha pra lá.
Essas vilas eram abastecidas por água corrente e luz elétrica, mas não pela rede de esgoto. Cada um que fizesse um poço no seu pátio. Era chamado de “poço negro”, muito profundo, para onde escorriam os dejetos por queda livre, através de canos. O chão de barro do fundo do poço que se encarregasse de absorver os dejetos.
A água servida escorria através de canos para a rua, para uma valeta que corria a céu aberto, paralela e na frente dos chalés. Era reservada uma pequena calçada de terra, entre o chalé e a valeta.
Quando eu digo que a formação familiar foi fundamental na formação desses pobres é porque nessas vilas moravam famílias bem constituídas; marido, mulher e filhos (dois ou três); dificilmente as famílias tinham muitos filhos. O comportamento social dessas famílias em nada se diferenciava do comportamento social da classe média. O marido era sério e trabalhava, ainda que em funções muito humildes, como pedreiro, pintor, encanador, metalúrgico, e até na estiva. Como a região era próxima do porto, muitos trabalhavam no porto, na estiva; por ser perto, dava pra ir de bicicleta.
A mulher trabalhava como doméstica, em casas de família, ou lavadeira em casa, ou cuidava da casa. Todos trabalhavam e isso era um exemplo para os filhos, que já eram criados dentro desse espírito de responsabilidade. Brincavam na rua, jogavam bola na rua, mas sempre guardando o respeito pelos pais. Dificilmente uma criança criada nesse ambiente vai virar ladrão. Os pais já tinham sido criados dentro desses mesmos princípios…
Os meninos, quando chegavam na idade de treze, quatorze anos e não queriam mais estudar, se empregavam como caixeirinhos nos armazéns, e levavam as compras em casa, de bicicleta. Já iam fortalecendo o senso de responsabilidade.
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Isso até chegar na idade de servir ao Exército.
Olhando, hoje, essa conjuntura, eu não vejo ambiente para a proliferação do crime. Eu vivenciei essa realidade. Nunca ouvi uma empregada comentar que um vizinho tinha se transformado em bandido.
Eu, menino, freqüentava o ambiente da várzea, jogava no juvenil de time de várzea, e nunca soube de alguém que tivesse virado bandido. Isso era Pelotas! Uma outra forte razão que eu encontro é a religião.
Todos esses pobres eram muito católicos. Havia muito poucos umbandistas e muito poucos espíritas. A gente podia medir a quantidade de católicos pobres pelas procissões.
Uma procissão em Pelotas era um mar de gente humilde, seguindo a procissão e cantando em voz alta. Não era só ação de presença. E todas as mulheres carregavam os seus filhos/filhas menores pela mão, cantando junto. Na verdade, a religião servia como um freio. Pra mim, o maior legado da Igreja foi a ênfase ao respeito. Respeito aos pais. Respeito aos mais velhos. Respeito aos bens e direitos. Respeito à Vida.
Eu estou convencido que esses dois fatores foram fundamentais na formação moral da classe mais humilde de Pelotas. E o são até hoje. Uma pesquisa recente demonstrou que Pelotas é a 4ª cidade menos violenta do Brasil, com 8,72 homicídios para cada 100.000 mil habitantes.
Os especialistas preferem fazer essas estatísticas em cidades com mais de 300.000 habitantes, para evitar distorções. A cidade mais violenta no Brasil, segundo esse critério, é Serra (ES), com 97,62 em cada 100.000 habitantes.
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Quando eu volto a Pelotas eu procuro prestar atenção nos comentários dos amigos, no Aquário, no Bavária, no Clube Comercial, na Praia do Laranjal. Eu nunca ouvi qualquer comentário deles sobre a existência de um crime que tivesse ocorrido em Pelotas.
Que Deus conserve Pelotas assim!
(*) Luiz Carlos Marques Pinheiro nasceu em Pelotas, em 12/01/1940, onde estudou nos colégios São Francisco e Pelotense. Em 1961, foi trabalhar em São Paulo, onde se casou alguns anos depois com Suzana do Couto Rosa Pinheiro, tendo duas filhas: Beatriz e Izabel (na foto, com o pai). Formou-se em Direito na Faculdade São Francisco, desempenhando atividades profissionais em várias empresas, destacando-se o Banco Bandeirantes, onde foi diretor de marketing. Faleceu em São Paulo, em 16/12/2021. Embora morando há 60 anos fora, ele adorava Pelotas e tinha um blog sobre a cidade.
Em minha infância lembro de meus avós maternos, moravam na Felix esquina Miguel Barcelos, sentados em cadeiras de paria no verão ao cair da tarde. Outros vizinhos faziam o mesmo, casas com portas e janelas abertas. Era um momento de socialização em plena calçada que se tornava uma espécie de praça de encontros, crianças brincando, adultos mateando e conversando. Este hábito aos poucos foi sumindo cedendo à violência e o medo que fecharam e gradearam portas e janelas, os vizinhos (em boa medida) já nem se conhecem e a rua ou de praça a lugar ameaçador. Sumiram as conversas, o burburinho das crianças e a velha Pelotas dorme o sono melancólico no quarto das memórias de quem viveu um tempo que não voltará.
Imoral e ilegal! A veiculação do documentário Todos Nós por Todos Nós, produzido pelo Governo do Estado, que retrata Eduardo Leite como um herói durante o desastre climático no ano ado fere princípios básicos da istração pública, como legalidade, moralidade,… pic.twitter.com/npLq0uqlhX
“A programação voltada à segurança no trânsito, do Maio Amarelo 2025 – Desacelere, seu Bem Maior é a Vida –, não deixou de fora o mês dedicado às mães. Sábado (10), às 10h, no Parque Dom Antônio Zattera, na frente do Altar da Pátria, a Prefeitura promoverá a blitz educativa em homenagem ao Dia das Mães, com distribuição de material informativo e orientações a condutores sobre a responsabilidade de cada um para evitar acidentes e poupar vidas.”
Ou seja, prefeitura vai homenagear mães com uma blitz.
Edwin
05/06/23 at 21:51
Em minha infância lembro de meus avós maternos, moravam na Felix esquina Miguel Barcelos, sentados em cadeiras de paria no verão ao cair da tarde. Outros vizinhos faziam o mesmo, casas com portas e janelas abertas. Era um momento de socialização em plena calçada que se tornava uma espécie de praça de encontros, crianças brincando, adultos mateando e conversando. Este hábito aos poucos foi sumindo cedendo à violência e o medo que fecharam e gradearam portas e janelas, os vizinhos (em boa medida) já nem se conhecem e a rua ou de praça a lugar ameaçador. Sumiram as conversas, o burburinho das crianças e a velha Pelotas dorme o sono melancólico no quarto das memórias de quem viveu um tempo que não voltará.