Conheci Luiz Carlos Marques Pinheiro mais ou menos há 10 anos. Ele me contou que escrevia crônicas sobre Pelotas, memórias do tempo que viveu aqui. Já há quase 50 anos morando em São Paulo, não esquecia Pelotas. Viajava sempre para cá. Um primo de Luiz, Francisco de Paula Marques Rodrigues, me contou que ele havia falecido e deixara um acervo de crônicas sobre a cidade que, na opinião dele, merecia ser mais amplamente divulgado. Interessei-me em publicar na forma original, conforme as memórias dele, memórias de décadas adas (RSA)
Pelotas minha cidade / lugar onde eu nasci / ando nos braços do mundo / mas sempre volto pra ti! (Kleiton e Kledir)
Ano 2013. Eu tenho escrito muitas crônicas sobre Pelotas. Sempre com o mesmo objetivo: deixar material de pesquisa para os historiadores no futuro. Eu escolho como temas apenas aqueles das décadas de ’40 e ’50, não-registrados na Internet.
O que já está na Internet o pesquisador vai lá e copia. O meu objetivo é permitir que daqui há vinte ou trinta anos um acadêmico em Pelotas – e os há tantos – possa escrever sobre a Pelotas das décadas de ’40 e ’50, e encontre material para pesquisar. Como era viver em Pelotas nessas duas décadas?
Para fechar o circuito, eu pedi a um primo em Pelotas que me criasse um site na Internet, onde eu pudese deixar registradas as minhas crônicas. E foi o que fiz. Agora já posso morrer em paz. O material está em aberto para quem quiser pesquisar.
Eu já estou com setenta e três anos. Quando eu vou a Pelotas e pergunto pelos meus colegas de colégio, e fico sabendo que já estão quase todos mortos, eu fico impressionado como se morre cedo em Pelotas. O meu melhor amigo em Pelotas era o Fernando Delanoy. Já morreram o velho Delanoy, a sua esposa e os três filhos que moravam em Pelotas, inclusive o Fernando.
Publicidade
Como eu só escrevo sobre aquilo que não está registrado na Internet, se eu morresse antes de fazer este registro Pelotas ficaria sem memória, e sem material de pesquisa, principalmente da década de ’40.
Eu tenho um carinho muito grande com essas duas décadas porque foram as décadas em que eu morei em Pelotas. No início de 1960 eu vim para São Paulo, onde estou até hoje (…mas sempre volto pra ti…).
Eu quero ver se consigo transmitir aos pelotenses que hoje estão na faixa dos quarenta anos ou menos, através desta crônica, como era difícil a vida em Pelotas nessa época, principalmente na década de ’40. Uma Pelotas que eles nem fazem idéia que existiu.
Quando eu nasci, em 1940, o meu pai era funcionário da Prefeitura, lotado no Colégio Pelotense, onde era secretário do Diretor Vicente Rochedo, que, depois, virou um grande amigo pessoal meu.
O salário era baixíssimo, não permitia nem que meu pai alugasse uma casa. Morávamos, os três, meu pai, minha mãe e eu, em um quarto, em uma pensão, familiar na Andrade Neves, acho que esquina com Voluntários. Em 1943 nasceu a minha irmã, e amos a ser quatro num quarto.
A bem da verdade – e é preciso que os pelotenses de hoje saibam disso – Pelotas nessa época era uma cidade que, embora com cem mil habitantes, eram todos de uma classe média das mais baixas possível. É claro que havia uma meia dúzia de ricos, mas já tinham sido mais de quarenta, empobrecidos que foram pelas dificuldades de vida.
Já casado, e eu nascido, meu pai fez concurso para o Banco do Brasil, foi aprovado, e nomeado para uma agência no Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca.
Publicidade
Ficamos dois anos no Rio e meu pai conseguiu, através de velhos amigos de família, ser transferido de volta para Pelotas.
A viagem de volta, uma tragédia. Nove dias de navio, do Rio até Rio Grande. À noite, nenhuma luz podia ser acesa no navio, por medo da aviação alemã (era 1943, em plena II Guerra Mundial). De dia, dentro do navio, uma tensão constante, pelo risco de ser atacado por um submarino alemão.
“En ant”. Em 1942 tinha sido afundado o paquete Baependi. Segundo a Wikipédia:“O paquete Baependi (Baependy) foi um navio brasileiro de carga e de ageiros, afundado, na noite do dia 15 de agosto de 1942, pelo submarino alemão U-507, no litoral do estado de Sergipe. Foi o décimo-sexto navio brasileiro a ser atacado (o décimo-quinto naquele ano), e o seu torpedamento consistiu, até então, na maior tragédia brasileira na Segunda Guerra Mundial, com 270 mortos, sendo superado nessa estatística apenas pelo afundamento do cruzador Bahia, em 1945, no qual morreram cerca de 340 homens”.
Voltamos para a mesma casa de pensão na Andrade Neves. A única lembrança que eu tenho dessa casa eu já tinha quatro anos. É a de um aleijado, que também morava ali, e que não tinha as duas pernas. Ele se locomovia através de dois banquinhos de madeira, almofadados, ando de um pro outro, sucessivamente.
A dor ensina a gemer …
Mesmo como funcionário do Banco do Brasil, o meu pai só teve condições de alugar uma casa, na Mal.Deodoro, perto da Capitão Cícero, em 1945, depois de seis anos de casado, quando eu já tinha cinco anos. Nós pegamos todo o período da II Guerra Mundial morando em pensão, em Pelotas e no Rio de Janeiro.
Como era difícil a vida nessa época! O dinheiro, menor que a necessidade. Havia racionamento de tudo por causa da guerra. Filas enormes para se comprar qualquer coisa, porque quase toda a produção de alimentos era encaminhada para alimentar os exércitos aliados na Europa, no chamado “esforço de guerra”.
Publicidade
Tudo era feito com muito sacrifício…
Estranhamente eu não encontro na Internet – e aqui fica um aviso aos historiadores de Pelotas – nenhuma descrição sobre as conseqüências da II Guerra Mundial em Pelotas. O único texto que faz alguma referência é meu mesmo, chamado “A Carestia” (publicado no Amigos de Pelotas). A minha alfabetização foi feita pela minha mãe, me ensinando a desenhar as letras. Com cinco anos eu já conseguia escrever bilhetes para as minhas tias. A minha mãe ia dizendo as letras, uma a uma, e eu as ia desenhando…
Ao lado da casa que o meu pai alugou na Mal.Deodoro morava um casal, com um casal de filhos. A menina, que já estava no ginasial, se condoeu da minha situação de semi-analfabeto e me alfabetizou.
Clélia Guedes, eu gostaria que você pudesse estar me lendo agora, para ver o tamanho da minha gratidão.
Com cinco anos de idade, o meu sonho de consumo era ter uma bicicleta de três rodas (o termo triciclo não existia). Nunca tive essa bicicleta…
Na quadra em que morávamos provavelmente nenhum guri teve uma bicicleta de três rodas, porque, se tivesse, eu teria andado nela. A vida era difícil para todos…
Mas hoje, quando eu recordo isso, eu lembro também que a gente tinha empregada, e que dormia em casa. Ora, pra ter empregada, em 1945, com muito pouco dinheiro, era necessário que as empregas domésticas ganhassem também o mínimo dos mínimos. A vida era muito difícil para todos…
Publicidade
O raciocínio naquela época era que uma empregada em casa significava uma boca a mais pra comer. E eu chego a lembrar da minha mãe, comentando com as minhas tias quando iam lá em casa: …E como comem!!!
Imaginem o nível de necessidade da classe média-baixa de Pelotas nessa época…
Essa situação não era só na minha casa. O meu pai era ”Funcionário do Banco do Brasil”, o que era um baita atestado. Imaginem o resto…
Não obstante as dificuldades financeiras do povo, Pelotas permaneceu, durante toda a década de ’40, como a 2ª maior economia do Estado, somente atrás de Porto Alegre, graças ao tamanho da sua população.
Brinquedos, ninguém tinha. Se brincava na rua, de pular corda ou de “pega”, aquela brincadeira em que um esconde o rosto, conta até dez, e tem que pegar algum dos outros, que saíam correndo.
Para ajudar a ar o tempo, a gente jogava bolinha de gude no quintal de casa, que era de terra.
O refrigerador e o geleiro. Geladeira elétrica não existia; era refrigerador, assim chamado porque não gelava, só refrigerava. Era um móvel de mais ou menos 1,40 m por 0,60 m, de madeira muito grossa, forrada de zinco. Duas portas, uma em cima e uma em baixo. Na parte de cima se guardava o gelo, em pedaços grandes, protegido por serragem, envolto em saco de estopa, e depois em jornal, para conservar o gelo por mais tempo. A serragem era comprada em sacos, nas serrarias.
Publicidade
Na parte de baixo se guardava, talvez, um ou dois litros de leite, uma garrafa de água, um pote de manteiga e mais uma ou duas vasilhas.
Era preciso fazer uma combinação com o geleiro, que ava todos os dias em uma carroça com cavalo. Combinava o preço, e se o gelo era fornecido todos os dias, ou dia sim, dia não. O geleiro, ao ar, não avisava ninguém; deixava o gelo na calçada e seguia em frente. Quem quisesse que retirasse o seu gelo da calçada e levasse para dentro, antes que derretesse.
O ventilador e os fresteiros. No alto-verão era impossível viver sem um ventilador. O meu pai comprou um, o único em casa. De mesa, metálico, bom tamanho das pás (consideradas até grandes), giratório, marca GE. Esse ventilador ele manteve pelo resto da vida.
Quando estavam na copa fazendo uma refeição, o ventilador estava lá. A minha mãe gostava de dormir depois do almoço, e lá no quarto estava o ventilador. No jantar, já estava na copa novamente. E à noite ia para o dormitório do meu pai e da minha mãe. 9 hs.da noite e eles já estavam deitados. O meu pai escutando rádio, luz apagada, e o ventilador ligado.
O meu quarto era o da frente, com janela para a rua. No alto verão o meu pai abria uma fresta de uns vinte centímetros na janela que dava para a rua, para sair o ar quente e melhorar a temperatura do quarto. Lembrem-se que só havia um ventilador na casa. Estávamos em 1945.
Essa prática de deixar uma fresta na janela da rua era muito usada nessa época por muitas casas. Algumas deixavam a janela completamente escancarada. Esse fato gerou uma nova prática em Pelotas: os “fresteiros”.
Os fresteiros eram verdadeiros cafajestes, que saíam à rua na madrugada, a olharem para dentro dos quartos, pelas frestas, na tentativa de ver alguma coisa. Eram poucos e apontados na rua pelos meninos.
Publicidade
– Fogão a gás, nem pensar! embora houvesse fogão a gás no Brasil desde os anos ’30, e Pelotas tivesse um gasômetro por 70 anos, implantado na zona do Porto no Porto, desde 1875. A solução era o fogão a lenha, de ferro. Eu acredito que o fogão a lenha era usado, nessa época, em todas as casas de Pelotas. O fogão a lenha exigia uma “técnica” toda especial para ser pilotado. Mas as mulheres da época não se apertavam.
Era constituído de uma chapa grande de ferro, com quatro bocas, cada uma delas com uns quatro aros. As bocas eram istradas uma a uma. Tirando todos os aros de uma determinada boca, o fogo ficava totalmente aberto naquela boca. À medida em que os aros iam retornando, a boca ia se fechando, diminuindo a intensidade do fogo, até fechar totalmente com a colocação da última, que era uma tampinha.
A lenha também tinha segredo. Úmida, não queima. Era comum colocar algumas “achinhas” (esse era o nome que se dava à lenha) no forno, enquanto se cozinhava, para secar totalmente. A colocação das achinhas para acender o fogão também tinha segredo. Se mal colocadas custavam a pegar fogo e, quando pegava, demorava muito para queimar. Com a técnica certa, pegava fogo logo, e logo já estavam queimando.
À noite, o forno era usado para secar os sapatos úmidos da rua, mas somente depois que ficava morno.
A chapa quente do fogão também era usada para manter quente a água de uma chaleira; para ar um bife; para fazer uma torrada.
O ferro elétrico já existia no Brasil desde o início do séc.XX, mas em Pelotas, não. Em Pelotas o ferro era a carvão. Era uma outra atividade que exigia uma boa técnica. Se não soubesse aquecer direito, ou ficava muito frio, e não ava direito a roupa, ou ficava muito quente, e chamuscava a roupa.
As brasas eram feitas à parte, geralmente num fogareiro de carvão, e depois adas para o ferro.
– O fogareiro de carvão era um auxiliar do fogão. Era de ferro. Se colocava carvão, um pouco de álcool e tocava fogo. O carvão ia queimando, até virar brasa. Não compensava aquecer o fogão para fazer um chá para as visitas. Fazia no fogareiro de carvão.
Publicidade
As donas de casa e as empregadas dominavam todas essas técnicas.
A lenha e o carvão era fácil de comprar, porque qualquer armazém vendia. Era um grande negócio para eles, porque o consumo era muito grande, o ano inteiro.
Em 1947, o meu pai comprou o seu 1º carro. Um Ford Modelo “A” americano, preto, capota de lona, ano 1929. Só que o meu pai comprou o seu primeiro carro já quando tinha 33 anos, casado e com dois filhos, e “Funcionário do Banco do Brasil”…
A primeira vez que eu sentei em um banco de automóvel eu tinha sete anos de idade. Rapazes de hoje, essa era a Pelotas da minha época…
Mas o meu pai, com33 anos, não sabia dirigir. Foi aprender depois de ter comprado o carro. O carro só rodava, praticamente, nos domingos à tarde. Durante a semana o meu pai trabalhava. Dirigir à noite ele tinha medo. Nos domingos de manhã ele ia à missa na Catedral, a pé.
Nessa época, o único eio mais longo que se podia fazer de carro era ar a tarde de sábado, ou domingo, na Cascata, para tomar um café alemão. Ou ir até ao Fragata, no domingo à tarde, visitar os meus avós.
O outro eio, apenas teórico, era ir até ao Laranjal. O Laranjal era, todo ele, uma única propriedade privada, do velho Assumpção. Ao morrer, as terras foram divididas entre os herdeiros, cabendo a cada um uma fazenda. Para se ir até ao Laranjal era preciso conhecer o proprietário de uma das fazendas e pedir um “e” para ar pela porteira da sua fazenda.
Publicidade
A que nós íamos era a do Dr.Ferreirinha, médico, casado com uma Assumpção, que o meu pai conhecia porque ele era médico do convênio com o Banco do Brasil.
Só que até chegar à porteira da fazenda era preciso cruzar o São Gonçalo de balsa (e ar a fila!) e pegar uns oito quilômetros de estrada de areia solta, fofa, com uma camada de uns trinta centímetros. Caminhão, ava. Mas, automóvel, dava trabalho, e às vezes ficava preso na areia. A Prefeitura, para ajudar, às vezes mandava ar a patrola na estrada, afastando a areia para as laterais, deixando o leito da estrada na parte mais firme.
Dava tanto trabalho que quase ninguém queria ir…
Nessa época o meu pai não se atrevia a dirigir até o Cassino. Mas eu não tiro a razão dele. Não só tinha que atravessar uma outra balsa (e ar uma fila!!!), como a estrada até Rio Grande também era um baita areião.
Em 1948, o meu pai alugou uma casa do meu avô na Gonçalves Chaves, perto do cine Apolo.
Essa casa, no início, foi um problema para nós. Tinha sido uma pensão de mulheres, que sairam para que nós entrássemos. Os marinheiros chegavam no Porto e, na madrugada, queriam entrar na casa. Estavam acostumados… Como não conseguiam, enfiavam o pé no portão de ferro de entrada do jardim e gritavam nomes que a gente não entendia, mas adivinhava.
A vizinhança era toda de classe média-baixa, salvo raras exceções. Nosso vizinho de frente era um tenente dos bombeiros. O vizinho à esquerda eram duas famílias de portugueses, marceneiros, que moravam juntas. A marcenaria fiava nos fundos da casa. No meio da quadra, tinha uma casa velha bem recuada, que não dava para se ver por causa de uns caramanchões enormes na frente. Ali moravam duas famílias de negros, que faziam sessões de macumba, pelo menos duas vezes por mês. A gente só escutava os batuques.
Publicidade
Na esquina à direita tinha um bar, e nos fundos desse bar era a sede de um clube de várzea, onde eu jogava futebol no Juvenil, e jogava ping-pong todas as noites, até às 9 hs., quando o meu pai ia me chamar. Era a minha única distração em Pelotas, até aos 16 anos, quando eu ei a freqüentar o Centro.
A irmã mais nova da minha mãe, casada com um sujeito muito rico, de família tradicional de Pelotas, me conseguiu uma matrícula no Colégio São Francisco, que também era na Gonçalves Chaves, só que uns oitocentos metros adiante. No São Francisco eu comecei em 1948, no 3º Ano, e fiz 3º e 4º. A alfabetização feita pela Clélia tinha sido perfeita. Não tive nenhuma dificuldade em acompanhar a classe.
Só então tomei conhecimento, pela primeira vez na vida, de uma outra realidade de Pelotas, que eu desconhecia. Quase todos os meus colegas de classe, meninos e meninas, cada um deles vinha de uma família tradicional. Muitos deles, ricos. Um deles, a família tinha motorista particular, de uniforme e quepi. Num Hudson preto, ia nos buscar no colégio. Fiz muito boas amizades.
A vida em casa tinha melhorado um pouquinho; provavelmente o salário tinha melhorado. Em 1948 já não havia escassez em Pelotas. Mas o salário ainda era contado. Muitas e muitas noites eu via o meu pai sentado na copa, anotando em um papel branco pequeno as despesas do mês; depois, somava tudo e comentava com a minha mãe. Ele sabia todas as despesas de cabeça. Isso era facilitado porque a verba para a rubrica “despesas extraordinárias” era ZERO.
Eu acho que só comecei a ganhar mesada semanal depois dos 11 anos. Até então a minha mesada era o dinheiro do cinema, uma vez por semana, na matinée de domingo.
A casa era antiga, com todos os defeitos de uma casa antiga. Eram três quartos e um banheiro. Não tinha chuveiro elétrico. A água era aquecida num cilindro preso à parede do banheiro, em cima da banheira. Em sua parte superior era o depósito de água a ser aquecida. Na parte inferior se enchia de jornal e tocava fogo. Essa era a única água “quente” disponível para um banho. No inverno a gente ava apertado.
Mas a gente tinha um truque. Colocava álcool em uma baciinha de alumínio e tocava fogo. Havia uma pequena explosão, e o banheiro logo ficava quentinho. O banheiro da empregada era dentro de casa, mas só tinha o vaso e um chuveiro, que não era elétrico; o banheiro não tinha pia. A minha mãe dizia que a empregada podia muito bem, de manhã, lavar o rosto no tanque, do lado de fora da casa. Ah, minha mãe!
Publicidade
No quintal a minha mãe criava galinhas. Ela sabia que não tinha despesas com a alimentação delas (porque aproveitava os restos da refeição) e ainda fazia economia deixando de comprar ovos. Os ovos, a gente comia, ou eram postos pra chocar. E de quebra ainda se comia um franguinho, de vez em quando. Mas “frango”, porque as frangas viravam galinhas. Quem conheceu a minha mãe sabe muito bem como era a sua cabeça!
Das galinhas e frangos que se matava durante o ano, as penas eram lavadas, secadas ao sol e ensacadas. Iam virar coberta de pena e travesseiros. Em 1950 eu me matriculei no Curso de issão do Colégio Pelotense, onde fiquei até o 3º Científico. A década de ’50 foi um pouco mais leve. Já se podia respirar…
(*) Luiz Carlos Marques Pinheiro nasceu em Pelotas, em 12/01/1940, onde estudou nos colégios São Francisco e Pelotense. Em 1961, foi trabalhar em São Paulo, onde se casou alguns anos depois com Suzana do Couto Rosa Pinheiro, tendo duas filhas: Beatriz e Izabel (na foto, com o pai). Formou-se em Direito na Faculdade São Francisco, desempenhando atividades profissionais em várias empresas, destacando-se o Banco Bandeirantes, onde foi diretor de marketing. Faleceu em São Paulo, em 16/12/2021. Embora morando há 60 anos fora, ele adorava Pelotas e tinha um blog sobre a cidade.
Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.
Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.
Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.
Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.
Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.
Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.
Publicidade
Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.
No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.
Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.
Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.
Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.
Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.
Como assim caos interior?
Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.
Publicidade
A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.
Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.
Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.
É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.