Conheci Luiz Carlos Marques Pinheiro mais ou menos há 10 anos. Ele me contou que escrevia crônicas sobre Pelotas, memórias do tempo que viveu aqui. Já há quase 50 anos morando em São Paulo, não esquecia Pelotas. Viajava sempre para cá. Um primo de Luiz, Francisco de Paula Marques Rodrigues, me contou que ele havia falecido e deixara um acervo de crônicas sobre a cidade que, na opinião dele, merecia ser mais amplamente divulgado. Interessei-me em publicar na forma original, conforme as memórias dele, memórias de décadas adas (RSA)
Ano 1935. Na década de ’30 o Fragata era o melhor bairro de Pelotas, o bairro que mais crescia e o mais badalado.
No coração do Fragata estava situado o Parque Sousa Soares, o ponto mais famoso e de maior atração da cidade, especialmente nos fins de semana. O Fragata era o bairro mais populoso e movimentado da cidade pela presença do prado, do cemitério, do parque Ritter com suas retretas aos domingos e o seu “bosque Champs Elisée”, do parque Souza Soares, a maravilha de recreação para toda a família. O Parque dava frente para a Av. Gal. Daltro Filho (hoje Av. Duque de Caxias), a principal via de o do bairro e via de saída para Jaguarão e Bagé.
O Parque se tornou tão importante na vida da cidade que os seus freqüentadores mais exigentes exigiram que a Light & Power, a do sistema de bondes, desviasse os trilhos para dentro do Parque, para maior comodidade dos seus usuários.
Na extremidade esquerda do Parque havia uma entrada, uma estradinha de terra, chamada de Estrada da Guabiroba, que dava o aos terrenos localizados depois do parque.
Como o parque era o “point” da cidade, todos os terrenos que se localizavam na estrada da Guabiroba, de frente para o parque, ficaram muito valorizados, com uma grande procura pelos ricos de Pelotas.
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Os ricos compravam os terrenos para construir chácaras. Era um luxo. Ter uma casa na cidade e uma chácara a 5 km. de distância. Sossego, tranqüilidade, intimidade, ausência de vizinhos… Um lugar excelente para se ar um final de semana reunido com a família.
Bastava um casal de caseiros e as chácaras proporcionavam desfrutar de árvores frutíferas, canteiros com flores, canteiros com temperos, criação de porcos e de galinhas.
Ah! As galinhas! Não só davam os ovos para os doces, como davam as penas, para os acolchoados e travesseiros. E, principalmente, davam a carne e o sangue para fazer a maravilhosa “galinha a molho pardo”.
As chácaras proporcionavam ainda, como sub-produto, o abastecimento da casa da cidade com frutas, flores e temperos.
Possuir uma chácara no Parque era um atestado público de riqueza. Como eram casas para o final-de-semana, não eram muito grandes, mas muito confortáveis, mesmo assim. Os ricos se tratam bem… Algumas eram térreas; outras, assobradadas.
As senhoras ricas se esmeravam nos cuidados com os jardins. Afinal de contas, os jardins iriam proporcionar as flores para enfeitar a casa.
É claro que, visto com olhos de hoje, a vida não era tão fácil assim. Apenas para dar uma pálida idéia: não havia luz elétrica, era lampião a querosene (eram necessários vários, em uma casa); não havia telefone; não havia geladeira, chamava-se frigorífico e era abastecido com pedras de gelo, de fornecimento irregular; o fogão era a lenha, com o reforço de um fogareiro a carvão e um fogareiro “Primus” de pressão, a querosene, para as coisas mais rápidas; o ferro de ar roupa era a carvão; a água para beber tinha que ser filtrada em filtro de barro; e por aí vai. Para o frio, a solução era a clássica: uma boa lareira, com nó de pinho.
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A água do banho era aquecida por um aquecedor cilíndrico, de latão, instalado na parede do banheiro, acima da banheira. A parte superior do aquecedor era o reservatório de água. Na parte inferior se colocava jornal para queimar. Havia um pequeno receptáculo, onde se colocava álcool e tocava fogo. No Rio de Janeiro já havia o aquecimento a gás encanado, mas o Fragata não tinha gás…
Uns poucos usavam o sistema de serpentina, que é um sistema de tubulações que aproveita o calor gerado pelo fogão a lenha para aquecer a água do banho. Os encanamentos serviam apenas a parte térrea das casas. Na parte superior dos sobrados não havia encanamentos, portanto, o banheiro tinha que ficar no térreo. Eu digo “o banheiro”, porque só havia um em cada casa.
O rádio era ligado somente à noite. Como não havia luz elétrica, os rádios funcionavam com bateria. E, para não gastar bateria, somente ligavam o rádio à noite, principalmente para ouvir a “Voz do Brasil”. A Voz do Brasil era fundamental para manter-se informado sobre as notícias do Brasil, porque jornal muito pouca gente comprava; era preciso fazer economia.
Não havia rede coletora de esgoto. Os dejetos do banheiro e a água com gordura da cozinha eram canalizados para fossas sépticas no quintal, profundas e separadas. A fossa dos dejetos era chamada popularmente de “poço negro”.
A água do banho e da pia do banheiro eram canalizadas para a rua, para uma vala a céu aberto ao longo da Estrada da Guabiroba, por onde também corria a água da chuva.
Como não havia lixeiro, o lixo seco era queimado no quintal. Eles sabiam que se mantivessem bem limpo o entorno da casa seria remota a possibilidade do aparecimento de ratos.
Mas os ricos não achavam ruim, porque não conheciam outra realidade. Para eles era normal. Não existia nada melhor no mundo que eles pudessem comprar. E assim eram felizes…
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Esse padrão de desconforto se manteve inalterado em toda a década de ’40. Primeiro, porque o Brasil enfrentou uma II Guerra Mundial; depois, porque o pós-guerra, de 1946 em diante, foi extremamente difícil para o Brasil.
Somente após 1950 Pelotas começa a dar sinais de que é possível ter o a um padrão mais confortável. Lentamente, tem início a industrialização, a modernização urbana e a migração do campo para as cidades, que foram fatores determinantes para a modernização de Pelotas.
Mas o grande salto de qualidade em Pelotas somente foi dado a partir de 1958, quando se instalam, então, os conceitos de cidade moderna, acompanhando, mais ou menos, o que acontecia no Brasil.
Com o tempo, ao longo da estrada da Guabiroba, depois do parque, começaram a surgir algumas construções, já com o espírito de residência definitiva. E esses moradores ficaram conhecendo o outro lado do parque.
Apenas para que se tenha um parâmetro, em 1947 só havia 1.289 residências em todo o Fragata, distribuídas entre as inúmeras vilas que compunham o bairro.
Morar no parque significava ter que pegar o bonde todos os dias, na avenida. Ou seja, caminhar pela estrada de terra uns trezentos metros ou mais. Nos dias secos, era só uma pequena caminhada. Mas na época das chuvas – dias a fio chovendo – a estrada virava um barro só. E os moradores tinham que andar no barro até a avenida pra pegar o bonde.
Para os ricos o o era bem mais fácil, porque era feito por automóvel. O bonde era o único meio de transporte em Pelotas; não havia outra alternativa. Estranhamente, a bicicleta não caiu no agrado dos pelotenses e nunca foi considerada um meio de transporte, a despeito de a cidade ser extremamente plana, propícia para o seu uso.
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A volta para casa era à noite, e não havia luz elétrica na estradinha. Era preciso andar com lanterna até chegar em casa. No inverno, nos dias chuvosos, se chegava em casa todo embarrado.
Esse fato acabou criando um hábito curioso nos moradores residentes. Ninguém saía de casa à noite; ficavam todos em casa. Como compensação, todos os solteiros saíam de casa no sábado à noite, para descontar os dias fechados em casa. Os casados, estes não faziam questão, tinham companhia, e sempre era possível sair para pegar um cineminha.
Não adiantava se arrepender. Como as casas eram próprias, ficava mais difícil se mudar.
Em 1935, o meu pai tinha 21 anos e morava com a mãe viúva, e cinco irmãos, na Guabiroba, na chácara.
A minha mãe morava do outro lado da avenida Daltro Filho, em frente ao parque, com os pais e cinco irmãos, numa fileira de nove casas que o meu avô materno tinha mandado construir.
Ali eles se conheceram, namoraram, casaram em 1939, e eu nasci em 1940. O 4º Posto. Na esquina da Av.Gal. Daltro Filho com a Estrada da Guabiroba, em frente ao parque, ficava o 4º Posto da Brigada Militar. Única e solitária presença do Poder Público no bairro.
O 4º Posto era uma referência em todo o bairro do Fragata. Todo mundo corria para o Posto quando tivesse uma necessidade. O Posto era a solução para todos os problemas. Principalmente porque era o único lugar em toda a redondeza que tinha telefone. Quem precisasse de um telefone corria para o posto.
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Na prática, o Posto funcionava como uma extensão da Companhia Telefônica. Todas as emergências eram socorridas pelo Posto. O pedido de uma ambulância, ou do carro de bombeiros, era feito no posto. Na verdade, acabava sendo a ocupação principal dos brigadianos.
Roubos não havia, salvo os de galinha. Aliás, ficou famosa a expressão “ladrão de galinha”, para se referir a um ladrão mixuruca. A palavra “assalto” não existia na época. As ocorrências policiais eram apenas as de desordem provocadas por bêbados e desavença entre vizinhos. Só.
Não havia possibilidade de fazer policiamento ostensivo. O número de policiais era muito limitado. Dessa forma as funções ficavam circunscritas ao ambiente interno do posto e ao atendimento às pequenas ocorrências. No entanto, o Fragata todo tinha muito respeito pelo Posto e pelos brigadianos, pela ação comunitária que faziam.
Era motivo, até, de orgulho para o bairro, poder contar com um Posto da Brigada.
(*) Luiz Carlos Marques Pinheiro nasceu em Pelotas, em 12/01/1940, onde estudou nos colégios São Francisco e Pelotense. Em 1961, foi trabalhar em São Paulo, onde se casou alguns anos depois com Suzana do Couto Rosa Pinheiro, tendo duas filhas: Beatriz e Izabel (na foto, com o pai). Formou-se em Direito na Faculdade São Francisco, desempenhando atividades profissionais em várias empresas, destacando-se o Banco Bandeirantes, onde foi diretor de marketing. Faleceu em São Paulo, em 16/12/2021. Embora morando há 60 anos fora, ele adorava Pelotas e tinha um blog sobre a cidade.
Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.
Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.
Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.
Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.
Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.
Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.
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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.
No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.
Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.
Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.
Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.
Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.
Como assim caos interior?
Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.
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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.
Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.
Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.
É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.