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Cultura e entretenimento 1f3218

Os saltos da vizinha 5j46n

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Desde cedo, eu me sinto atraído por pés femininos. Esguios, bem tratados, nus ou enfiados num belo calçado, eu os acho irresistíveis. Adolescente, gostava muito de um vinil que tínhamos em casa, não pelas músicas.

A capa estampava uma mulher seminua, em ambiente noir, envolvida por uma escura luz rosa, boreal, e seus pés, mais que tudo, me magnetizavam. Não eram pés perfeitos no sentido clássico, das esculturas. Discretos joanetes despontavam, mas essas saliências pareciam tornar tudo mais interessante. Não pareciam pés aptos a esforços, mas esculpidos para a luxúria e o prazer.

Há muitos anos, morando sozinho em São Paulo, eu tentava dormir quando os num andar superior do prédio me abriram os olhos de madrugada. Era verão, e o calor era inável.

Toc-toc-toc para cá, tic-tic-tic para lá.

E toc-toc-toc para cá e tic-tic-tic para lá.

Aqueles sons e movimentos não sossegavam, e me mantive acordado, devaneando. Pelos primeiros, estalidos que julguei procedentes de saltos altos, e por causa do calor e da alta umidade do ar, não demorei a imaginar uma vizinha nua, apenas calçada, com o corpo coberto por centenas de minúsculos diamantes, brotando-lhe da pele firme. As ‘pedrinhas’ pouco a pouco iriam se encorpando, e então escorrendo, encontrando-se no percurso com outras, formando gemas maiores, a partir daí escorrendo, densas e decididas, até alcançarem os pés – e escoar por eles.

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O tic-tic-tic me pareceram óbvios: um cachorrinho no encalço de sua dona.

No escuro, ouvindo as adas, imaginei uma mulher cinzelada nos pesos – claro estava, pela inquietação, que vivia em desacordo com o tempo. Sua vaidade desfilaria em um domicílio decorado, de bom gosto. Mas por que saltos altos e não chinelos de lar, e tão tarde? Como ela ia e vinha, vinha e ia, sucessivamente assim, talvez se dedicasse à arrumação. Mas por que naquela hora? Não, o movimento sugeria outra coisa. Dentre as possibilidades, fiquei imaginando, supondo: uma executiva de decisões, amaciando o calçado para exuberar no dia seguinte nos corredores de uma multinacional; uma dançarina de Flamenco treinando como humilhar a plateia com as mãos retorcidas e o o definitivo, fatal; uma aspirante a modelo seduzida pelos sonhos de jactar-se pelas arelas de Paris, Londres, Milão, a cabeça lá no topo, inível. Não podia ser uma mulher comum. Isso, não podia ser. Em qualquer caso, a insônia perseguia a vizinha, e a mim, a não ser, claro, que de dia dormisse porque, à noite, ela trabalhasse. Mas de salto?

Quem era a vizinha? Ela podia ser tudo, mas com certeza tinha pés muito bem-dispostos. Afilados. Lindos. Sensuais. A situação se repetiu na noite seguinte e perdi o sono de novo. Na terceira noite, ei um bom tempo em vigília, esperando pelos toc-toc-toc. (nessa altura, os tic-tic-tic já não me interessavam). Esperei pelas noites, mas nunca mais os ouvi. Após uma semana de esperas inúteis, procurei o zelador, por quem eu soube. No tal apartamento morava um advogado de cavanhaque. O homem, que acabara de se mudar para outro prédio, costumava parar na portaria com uma poodle nos braços para conversar.

Segundo o zelador, ele gostava de alardear que descendia de uma família de aristocratas de uma cidade do Sul. O zelador não sabia o significado de “aristocrata”, mas desconfiava que tinha algo a ver com os lacinhos cor-de-rosa nas orelhas da cadelinha e a bengala que o homem usava, mesmo que não tivesse nenhum defeito nas pernas.

– Nem joanete?

– O que é joanete?

Vê só onde a imaginação pode nos levar.

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Não era nada demais.

Era apenas um homem ocupado com a própria mudança.

Jornalista e escritor. Editor do Amigos de Pelotas. Ex Senado, MEC e Correio Braziliense. Foi editor-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Atuou como consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Uma vez ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, é autor dos livros Onde tudo isso vai parar e O fator animal, publicados pela Editora Lumina, de Porto Alegre. Em São Paulo, foi editor free-lancer na Editora Abril.

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Brasil e mundo 3m3y11

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio b4o68

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento 1f3218

O perigo das Gagas da vida 1n4w28

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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