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Cultura e entretenimento 1f3218

O FATOR ANIMAL (ficção) 1h6p34

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Não sei quando começou. Deve ter vindo ao mundo comigo nos meus genes, pode ter aparecido depois. Talvez eu fosse de colo e meu avô roçasse seu nariz de lobisomem no meu, provocando-me arrepios de estranhamento, não sei. O fato é que desde muito cedo sou como que hipnotizado por esses vestígios físicos que denunciam nos humanos a sua porção animal. Por exemplo, não consigo desgrudar os olhos de coisas como mãos peludas, sobrancelhas emendadas, caninos hostis, bocas espumando pelos cantos e outros sinais.

Na verdade, meu estado pode se agravar. Para que o mal-estar me domine por inteiro, basta que aqueles traços primitivos venham a público maquiados por retoques de vaidade.

Outro dia, numa igreja, enquanto o padre presidia a missa, meus olhos earam pelo piso de mármore nevado até se concentrarem num jogo de dedos com unhas esmaltadas de rubi. ‘Unhas’ é um modo educado de falar, pois imediatamente a visão daqueles membros inferiores evocou-me luas cheias, nuvens a sombreá-las de vez em quando e uivos prolongados, além da certeza de que, diante deles, uma pedicura nada poderia fazer senão duvidar da existência de Deus.

Se pés assim carregam o agravante de ser idosos, e se avançam em saltos altos pela fila da hóstia, em busca de perdão, o mal-estar se multiplica. Não deixo de reconhecer que a pessoa já foi um lindo bebê, no qual se depositaram grandes esperanças.

O que quero dizer é que, por causa desse hibridismo, sou conduzido da esperança à suspeição no gênero humano. Vou além. Se Deus nos criou, e à sua imagem, além de não ser um Apolo, tampouco é um cavalheiro. Pois se em público exibimos talheres, diante de uma costela, facilmente podemos besuntar as mãos e perder o controle das mandíbulas. Da mesma forma, se em geral confinamos o sexo, somos capazes de copular numa casa lotada de espetáculos, ou em bandos.

Ao contrário dos animais, que possuem a virtude de aceitar a própria condição, nós, humanos, procuramos mascarar os sinais da nossa bestialidade, apesar da inutilidade do artifício. Para provar de uma vez por todas o quanto é vã a nossa fé no elo perdido, costumo sugerir às pessoas que observem com toda atenção a paisagem de um salão de beleza. Ao menos para mim, o cenário que vejo nesses ambientes me transporta para a Ilha do Dr. Moureau – lá dentro, “fazem” sobrancelhas, “fazem“ cabelos, “fazem” mãos, “fazem” pés. O mesmo se dá em consultórios dentários, onde senhores de ameaçadores caninos acavalados aguardam ansiosos pela broca.

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Mesmo que elas e eles deixem os salões de beleza e as cadeiras de dentista menos inumanos do que entraram, não conseguem levar muito longe seus disfarces. Logo dentarão menta para aplacar o bafo. Ante o filho tomado de banho, baforarão “até parece gente”. Um amante sussurrará “no-ssa-se-nho-ra…” durante o ato sexual, algo que pode soar como expressão de prazer, mas igualmente como um pedido de desculpas pela conduta selvagem de minutos atrás. “Foi bom aquele negócio de me dar uns tapinhas e de me morder a nuca”, dirá a fêmea.

Se em geral mulheres têm maior antipatia pelas manifestações de bestialidade, ao ponto de conter ruídos profanos ao longo de toda a vida, ao contrário dos homens, mesmo elas não conseguem disfarçar sua animalidade. Um sujeito sensível, embora peludo como King kong, acha bonito ver a fêmea caída no sono, após o prazer. Até ela começar a roncar. Desculpe, mas mulher roncando é coisa feia de ver, pior do que homem. Parece que não combina. Mas que seus companheiros não se atrevam a comentar com as parceiras que, dormindo, elas parecem umas ursas hibernando no fundo de uma caverna, à espera da chegada da primavera.

Embora ansiemos pelo belo, denunciamos a todo instante nossas imperfeições. Depois que os cientistas concluíram que o DNA dos ratos repete em média 80% o código genético humano, ficou finalmente comprovado que advogados de boas maneiras não devem impressionar. Nem a elegância de atitudes e a elevação das palavras são capazes de mascarar o Mr. Hyde em nós, como estão cansados de saber os pedófilos escondidos atrás dos muros dos monastérios.

Jornalista e escritor. Editor do Amigos de Pelotas. Ex Senado, MEC e Correio Braziliense. Foi editor-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Atuou como consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Uma vez ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, é autor dos livros Onde tudo isso vai parar e O fator animal, publicados pela Editora Lumina, de Porto Alegre. Em São Paulo, foi editor free-lancer na Editora Abril.

Brasil e mundo 3m3y11

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio b4o68

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento 1f3218

O perigo das Gagas da vida 1n4w28

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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