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Uma visita ao asilo de mendigos 2z5ns

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O jardim do Asilo de Mendigos de Pelotas fica no centro de um quadrilátero de paredes cor do deserto e 20 janelas que rivalizam em altitude com pares de coqueiros que perfilam-se, feito guardiões, dos lados das três escadas de mármore de o ao interior da construção centenária. No asilo, o domínio é manso e ordeiro – como os felinos que repousam sob os bancos do jardim. Em um laguinho borbulhado por uma fonte feita de pedras, pequenas esculturas de garças, um inesperado sapo, sugerem a infância, vigiados por uma Virgem Maria. Um interno de cabelo branco sopra uma gaita no pátio. Notas musicais preenchem o ar enquanto um funcionário esclarece que, se desejo colaborar, devo conversar com os idosos.

Apesar do nome, o lugar não abriga mendigos propriamente ditos; paga-se para viver nele. Há duas alas, uma para mulheres e outra para homens, onde estou agora. O silêncio parece reverberar dentro do casarão, e um cheiro forte remete à ancianidade. a das 13h. Os internos esperam o lanche das 14h, café, leite, manteiga e pão, recostados em poltronas ou em cadeiras de roda, nas cercanias do refeitório. Outros aguardam nos dormitórios o toque do sino anunciando a refeição. Os que não possuem quarto privativo mantêm os ouvidos atentos ao sino em sombreados alojamentos coletivos, sobre camas identificadas por tabuletinhas numeradas; em uma, com surpresa, vejo um elefante de pelúcia de consideráveis proporções.

Na cama 48, descansa o ex-jóquei Antônio. Foi-se o tempo das corridas, registrado em fotografias penduradas à parede ao lado da cama. Uma das fotos na parede o mostra no começo da carreira, montado orgulhoso em um cavalo vermelho, mirando com expressão infantil. Aos 66 anos, ele avança a os curtos ao refeitório. Depois que abandonou as pistas e os prêmios, não precisa mais manter o peso nos 52 quilos exigidos dos jóqueis. “Foi uma época boa. Mas, como sempre lutei com a balança, e tinha corrida cinco dias na semana, só comia em dois; nos outros, tomava café. Meus bolsos viviam estufados de dinheiro, mas não podia me alimentar”.

O refeitório, como de resto as demais instalações, é despojado como um quartel. Cada morador ocupa lugar certo à mesa. Alguns recebem alimentos na boca, como arinhos. Dois deles acionam-me fragmentos de décadas longínquas, mas não lembro quem são.

Na extremidade de uma das oito grandes mesas retangulares, um interno de grossos óculos quadrados parece mal-humorado. “Esse tem dinheiro, é dono de um monte de imóveis, deixou os 20 filhos bem de vida, mas nenhum quis ficar com ele”, confidencia-me um funcionário. Em frente dele, exibindo óculos degradê quase femininos, numa escala do marrom ao amarelo, um homem negro de mãos enormes e unhas que requerem uma tesoura bebe leite com vagar. “Esse é o Ventura. É uma figura. Foi operador de máquinas agrícolas até se aposentar. Trabalhou muito na região de Caxias, na serra.” Embora privado da visão do olho direito, que lembra uma lâmpada queimada, ele mantém um meio-sorriso matreiro de dentes graúdos como chicletes, como se saboreasse uma graça secreta. Alto e atlético, exalando a conhecida jovialidade dos negros, não é difícil imaginar que uma mulher ainda possa se interessar por ele, aos 77 anos.

Porque sou novo no cenário, os moradores do asilo me espreitam enquanto sirvo à mesa. Alguns me acenam com a cabeça, como Ventura faz agora por trás dos óculos, que jamais tira. Da última mesa, do outro lado do salão, Antônio ergue um braço e me envia um abano com a mão. Uns poucos possuem deficiência mental, e vivem imersos em um mundo só seu. Outro possui a estrutura física de um garoto; no lugar dos olhos, duas meias-luas, mesmo assim, desloca-se sozinho pelos recintos, guiando-se pela memória, tateando as matérias. Ao lado do refeitório, uma sala abriga uma televisão de 50 polegadas. Depois das refeições, parte dos inquilinos se acomoda em frente do retângulo iluminado. Outros retornam às sombras dos quartos, sintonizam rádios a pilha e comem frutas – em geral banana e maça. Outros buscam o pátio, o sol e os canteiros. Rosas, hortênsias e jasmins. Uma bonita capela asseada vive quase vazia.

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“Eu sou um homem feliz”, surpreende-me o ex-jóquei, achegando-se do banco de jardim. Traz nas mãos outras fotografias para mostrar – com a neta no colo, vestindo chapéu campeiro e camisa do Grêmio, tratando de cavalos. “Eu tive uma vida boa. Gosto daqui, onde sou bem tratado”, diz, juntando as mãos como numa oração. Com meu trabalho, consegui comprar duas casas, onde moram minha ex-mulher e minha irmã. Sou livre para visitar meus parentes, e viajo sozinho com um e [rodoviário] que ganhei de presente de uma médica”.

Ventura fala menos que Antônio. Observa mais, e continua com seu matreiro meio-sorriso, agora diante da pregação de um rapaz da igreja que toda semana visita o asilo. O jovem traz uma bíblia nas mãos e procura orientar um grupo. Em frente dele, ao lado de Ventura, um velho magro de bigode ralo parece não entender as palavras do pregador. O rapaz insiste: “Sim, eu entendo o seu problema. Seu Clóvis, escute bem! Antes de realizar esse desejo seu, precisa elevá-lo em pensamento. Olha só o que fala a bíblia…”. Esfregando o indicador contra o polegar, o homem corta: “O doutor quer R$ 18 mil pela dentadura”. Ventura se levanta, devagar. O ex-jóquei volta a segurar-me pelo braço, como tem feito desde que conversamos. Repete-me “muito obrigado, o sr. é meu amigo para sempre”.

Quintas-feiras são especiais. Na tarde desses dias, um grupo de uma dezena de mulheres traz alarido ao casarão. Carregam sacolas com mimos gastronômicos, um caderno com letras de música. Abraçam idosos no pátio, estendem a eles doces e salgadinhos. Mostram afeto e são retribuídas. “Elas são boas pra nós”, diz o gaiteiro que vi na chegada, intimando-as: “Não se esqueçam de voltar semana que vem”. Elas sorriem da escada, pois sempre voltam, e desaparecem no prédio, onde percorrerão todos os cômodos. Sem o auxílio de instrumentos, as mulheres entram em um dos quartos e começam a sacolejar os corpos e a cantar: “Tá sassaricando, todo mundo leva a vida no arame / tá sassaricando / a viúva, o brotinho e a madame / o velho, na porta da Colombo, é um assombro, sassaricando…

A cantoria atrai o ex-jóquei. Ele chega de mansinho e tira a mais madura das visitantes para dançar. Marcando o ritmo com palmas, enfermeiros e outros moradores também cantam. “Assim vou acabar perdendo meu marido”, brinca a parceira de dança de Antônio, rindo do próprio comentário. Concentrado e sorrindo satisfeito, Antônio ignora e continua a rodar com ela. Retirando-se com o show para outro quarto, as mulheres são obrigadas a voltar. Um idoso quase inaudível pediu um bis: Elas reabrem o caderno: “Que beijinho doce, que ela tem / depois que beijei ela, nunca mais amei ninguém….” .

Um dos funcionários se aproxima de mim: “Para fazer esse trabalho, temos de ter bom humor e alegria, senão fica difícil”. Depois do impacto inicial, em que a depressão domina o visitante, percebe-se que o bom humor é regra no asilo. Brincadeiras e piadas movem os funcionários, que se revezam nas tarefas de servir o almoço aos inquilinos, empurrá-los em cadeiras de roda, acompanhá-los num eio, banhá-los, conversar com eles.

“Socorro, socorro, socorro, socorro, socorro”. De tempo em tempo, um interno grita esse mesmo aflito pedido. Não é nada demais, pois logo se acalma quando alguém se aproxima. De modo geral, os internos, como crianças, carecem de atenção. Não sem surpresa, pensando em dar carinho, o visitante descobre que recebe mais do que dá. “Eu vou tocar pra ti”, avisa-me o gaiteiro no jardim. Depois do anúncio cultural, José (só agora lembro de perguntar seu nome) some no casarão; logo reaparece, trazendo duas novas gaitas de boca de sua coleção, uma vermelha, outra azul, fabricadas na China. Em segundos inunda o ar com seu repertório gauchesco e acrescenta elementos cênicos, ando a dançar em movimentos pendulares laterais. “Tira uma foto de mim”, diz. Lembro que estou sem a câmara. Claro, há o celular, ele me lembra. Clique tirado e conferido: “Olha eu, que legal”, e sorri.

Na despedida, apertos de mãos, inevitáveis abraços, cobranças de novas visitas e promessas a conferir. “Meu amigo, tu é meu amigo para sempre”. Ventura se aproxima para compor uma fotografia comigo e o ex-jóquei, e pela primeira vez abre o sorriso, por inteiro.

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***

Ao deixar o casarão, Antônio, sua antiga profissão me fez pensar. Não vou te dizer isso, mas provavelmente concordarias que a vida humana, em matéria de emoção, é uma corrida de cavalos ao contrário. Quando os animais se aproximam da linha de chegada, a vibração é intensa e total. Na etapa final da existência, quando nós é que nos avizinhamos da linha, a sensação é a mesma das largadas, quando estalam as cancelas: um estado de apreensão sem retorno, à espera de resposta. Não é possível mais desfazer as apostas que fizemos.

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