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Cultura e entretenimento

O Carnaval da Rua XV. Por Luiz Carlos Marques Pinheiro

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Luiz Carlos e esposa,
Luiz Carlos e a esposa, Suzana

Por Luiz Carlos Marques Pinheiro (*)

Ano 1956. O maior ícone de Pelotas, indiscutivelmente, é o Carnaval. Já foi considerado o 3° maior Carnaval de rua do Brasil, atrás apenas do Rio de Janeiro e do Recife.

Pelotas ficou conhecida em todo o Brasil não por causa da sua indústria, ou dos seus doces, ou por causa das faculdades. Ficou conhecida nacionalmente por causa do seu Carnaval.

Do ponto de vista sociológico, é forçoso reconhecer que o Carnaval é um dos raros eventos em todo o Mundo em que as diferenças sociais são reduzidas a zero.

O Carnaval de rua de Pelotas apresenta duas fases distintas: uma, no início do século XX, entre as duas guerras; a outra, após 1950 (e até 1970, mais ou menos). É esta fase, a meu ver, que melhor representa o Carnaval de rua que competia com o do Recife e que ficou famoso nacionalmente.

1 – O Carnaval de rua não tinha arquibancadas. E por que não tinha?

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Porque não era um Carnaval para ser “assistido”. Era um Carnaval “participativo”. O Carnaval era do povo e não para o povo. O povo – todo o povo – participava do Carnaval. Só não ia para o Carnaval quem estava doente e de cama. (Lembra? Atrás do trio elétrico só não sai quem já morreu!)

Nota: O verdadeiro Carnaval de Pelotas, o das referências, só existiu enquanto o Carnaval foi na Rua XV.

As casas comerciais da Rua XV, da Floriano e da Andrade Neves, naquilo que é chamado “Centro”, alugavam as suas calçadas. As da XV para a colocação de cadeiras. Cada um levava de casa as suas cadeiras. E as casas comerciais se responsabilizavam em colocar e retirar diariamente. As cadeiras da Casa Americana, em frente ao Aquário, eram só para os ricos, pelo preço.

Essa proximidade do povo nas calçadas com os que brincavam na rua permitia uma interação ativa, cantando junto; jogando confete e serpentina… e até água suja.

As meninas subiam nas cadeiras e, como ficavam num nível superior à rua, isso facilitava lançar o confete e a serpentina. Sem contar que ficavam em maior evidência…

Pouco se jogava lança-perfume. Como era cara, era guardada para ser usada nos bailes, nos salões.

Um dado interessante: Nas cadeiras, não se consumia bebida alcoólica. A bebida comum era o refrigerante, vendido pelos ambulantes. Quem ia para o Carnaval não ia para beber. Álcool só com aqueles que brincavam na rua. Mesmo assim, não se via ninguém com uma garrafa de bebida na mão. Era proibido. E a fiscalização, rigorosa.

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Quem quisesse tomar uma pinga tinha que beber em um bar. Mas havia alguns que cheiravam lança perfume no lenço, o que era facilmente identificável, porque não se aguentavam em pé. Não havia brigas. O policiamento era muito bom e não permitia qualquer tipo de atrito. E a turma do “deixa-disso” também não deixava. “Carnaval é pra brincar, não pra brigar”.

Se algum arruaceiro bêbado resolvesse iniciar uma confusão, era logo preso pela Polícia e levado para a Delegacia, onde ficava até a quarta-feira de Cinzas. Na quarta feira de manhã as pessoas se aglomeravam na frente da Delegacia para vaiar e aplaudir os arruaceiros que eram soltos. Sem os efeitos do álcool e fantasiados de mulher, muito pintados, em um dia útil, avam grande vergonha. Esse castigo tinha finalidade educativa, além de livrar o Carnaval dos arruaceiros.

O período do Carnaval em Pelotas significava uma fase de mudanças de comportamento. As donas de casa sabiam que não podiam contar com as suas funcionárias domésticas. As raras famílias cujo patriarca não gostava de Carnaval saíam de Pelotas, porque não aguentavam a ebulição geral. As idosas carolas faziam “retiro”, que era um recolhimento espiritual da Igreja Católica, porque consideravam o Carnaval “obra do Demônio”. A Igreja Católica incentivava o “retiro” nas suas missas.

2 – Era tradicional os homens se vestirem de mulher. As prostitutas (todas as da cidade) se vestiam de homem. 90% das mulheres vestidas de homem no Carnaval eram prostitutas, e todos sabiam disso. Os homens não tinham a preocupação de esconder o rosto, pelo contrário.

Como todos os homens se pintavam como mulher, e de forma exagerada, até faziam questão de mostrar a cara (e exibiam as pernas cabeludas). As mulheres, pelo contrário, faziam questão de esconder o rosto com máscaras (afinal, eram prostitutas!); geralmente um saco de pano com uma abertura para a boca e outra para os olhos.

É sabido que as prostitutas de Pelotas só não “trabalham” em duas ocasiões: no Carnaval e na Sexta-Feira Santa.

Os travestis se aproveitavam da ocasião para desfilarem. Todos. Não ficava um travesti em casa. E eles gostavam de se mostrar bem escandalosos. Afinal, era Carnaval. Os travestis se vestiam com roupas de mulher, de preferência bem curtas e grudadas no corpo, para ressaltar as formas. Usavam peruca de mulher e muita pintura no rosto. Quanto mais exagerado melhor. E por isso não podiam usar máscaras. Gostavam de andar bem devagarinho, eando, rebolando, mexendo com quem cruzavam, em grupos de três ou quatro.

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As fantasias, principalmente as de “sujo”, escondiam as classes sociais, o que permitia uma total integração social. Fantasiar-se de “sujo” significava usar as piores roupas que tivesse em casa.

Os filhos de famílias da classe média e alta usavam as roupas das suas irmãs, de qualidade muito melhor.

Como na parte da tarde não havia desfile de blocos e ranchos, o povo tomava conta totalmente da rua, indo e vindo, brincando e mexendo com todo mundo que estava sentado. Isso proporcionava uma participação total.

Alguns levavam instrumentos musicais e iam cantando marchinhas. Dois ou três instrumentos era o suficiente para atrair uma meia dúzia de foliões vestidos de “sujo”, e estava formado um bloquinho, cantando.

Quando dois bloquinhos se cruzavam, um subindo e o outro descendo a rua, cantando marchinhas diferentes, ninguém ligava. Fazia parte do “espírito de Carnaval”.

Eventualmente, surgia um “conjunto musical” organizado: 5 a 7 instrumentos, vocal com duas vozes, todos com roupas iguais, que, devagarinho, iam cantando e descendo a rua; depois, subiam.

Alguns foliões, que ficaram conhecidos porque saíam da mesma forma todos os anos, eram adeptos do “Bloco do Eu Sozinho”. Se divertiam sozinhos, com fantasia ou não. Havia o que tocava violino em uma lata de inseticida, com três cordas (e saía som!); o que dançava com uma boneca de pano de mais ou menos 1,60m, feita com tecido preto para imitar uma negra, e que dançava agarrando a boneca pela cintura; o cinegrafista, que fingia filmar o Carnaval com um tripé e um caixão de madeira e uma lente como filmadora; o palhaço, com suas roupas características, a cara pintada de branco, uma bola vermelha no nariz e uma peruca laranja, mexendo com as crianças; e por aí vai… O importante era participar…

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Não se viam mendigos no espaço do Carnaval. Dizia-se que também eles participavam como foliões.

Mas a nota mais marcante do Carnaval de rua de Pelotas era a animação. Não se via ninguém eando; ninguém assumia o o de “eio”. Bastava alguém pisar no leito da rua e já assumia o o de “marchinha”; aquele o que acompanha as marchinhas. Olhando-se por cima das cabeças – um mar de cabeças – a rua totalmente tomada pelo povo, a sensação era de que a empolgação era total e ininterrupta. A multidão tomava conta da rua.

3 – O “Corso”

O Corso ocorria na parte da tarde, porque não havia desfiles oficiais. Por sua própria natureza, o corso era uma brincadeira exclusiva das “elites”, que possuíam carros ou que podiam pagar seu aluguel nos dias de carnaval.

No Brasil, teve início no Rio de Janeiro, na primeira década do século XX, e logo copiado por diversas cidades no Brasil. Pelotas se orgulhava de copiar o Carnaval do Rio de Janeiro e queria ser considerada o segundo Carnaval do Brasil.

O Corso exigia carros abertos (os famosos Fordecos 1924/1928), de capota arriada, para que a integração dos ocupantes com os foliões da rua se desse de forma mais ampla. O Corso de carro fechado não tinha graça.

As moças, fantasiadas, sentavam na capota arriada dos fordecos e alegravam o Carnaval, cantando e jogando confete e serpentina.

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As cortes do Diamantinos, Brilhantes e Clube Comercial, as princesinhas e suas cortes, também saíam em corso, um carro atrás do outro. O Corso permitia que as classes diferenciadas se sentissem participando “por dentro” do Carnaval, sem se misturar com a massa de foliões, protegidas que estavam pelo automóvel.

No Corso os carros desciam a Rua XV a 5 km por hora, um atrás do outro. Andavam e paravam; andavam e paravam…

4 – O Bloco dos “Acanhados”

O Comandante do Exército, sensível à importância do Carnaval para o povo (e entendendo que soldado também é povo), permitia que a Banda Oficial do Exército desfilasse no domingo de manhã, fantasiados de “empregadinha doméstica”, de saiote bem curtinho, sutiã e touca na cabeça; todos muito pintados de mulher (e não tiravam o bigode!).

O Comandante também permitia que usassem os instrumentos da banda do Exército, inclusive os instrumentos de sopro, o que dava uma qualidade muito superior à banda, muito aguardada pelo povo.

O Bloco ava e atrás dele seguiam todos os que ainda estavam fantasiados de “sujo” (afinal já era de manhã!). Quem não estava fantasiado só aplaudia.

5 –O Redondo. é o entorno do chafariz das Nereidas, no centro da Praça Cel. Pedro Osório. Como é um Carnaval muito especial, foi tratado em capítulo à parte.

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Rua XV

6 – O Carnaval da Noite (na rua)

De noite, as características do Carnaval eram outras. Havia uma programação para os três dias da semana. Uma noite saíam os Blocos; outra noite saíam os Ranchos; e na terça-feira de Carnaval era o dia do concurso das Escolas de Samba (Academia, Fica, Gal. Osório, Gal. Telles).

No entanto, entre um desfile e outro o povo tomava conta da rua. E ficava lotado como se fosse à tarde. Os Blocos e Ranchos eram formados por gente muito humilde: os brancos muito pobres e os mulatos; quase não havia negros. A simplicidade das suas fantasias revelava essa pobreza.

O bloco mais famoso e que deixou história em Pelotas foi o da “Girafa da Cerquinha”. Deve ter sido fundado entre as décadas de ’30 e ’40. O bloco tinha até uma marchinha própria, que era cantada pelos seus integrantes e pelos foliões:

“Girafa, Girafa, Girafa, oi / Essa girafa da Cerquinha está maluca / Ainda não é hora do batente / E ela fica impertinente / Acordando toda gente/ “.

Todas as crianças sabiam cantar essa marchinha.

As Escolas de Samba, pelo contrário, eram compostas basicamente por negros; quase não havia brancos. Isso se devia à forte identificação dos negros de Pelotas com as escolas de samba. Essa identificação gerava uma vinculação tal às Escolas que explica a ausência dos negros nos Blocos e Ranchos.

Esse movimento dos negros, em Pelotas, e essa união, foi uma reação ao forte racismo que dominava Pelotas até por volta de 1950. As escolas mais famosas eram a Gal. Teles, a Gal. Osório e a Academia do Samba.

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Essas escolas tinham uma torcida como se fossem clubes de futebol. O fanatismo era o mesmo. Quando qualquer uma delas entrava na Rua XV os seus torcedores pulavam e vibravam como se fosse um gol no futebol.

Indiscutivelmente, a Academia tinha um lugar especial no coração dos pelotenses. Desde o seu início, em 1949, procurou ser uma escola diferenciada.

A sua fantasia de desfile no Carnaval eram luvas brancas, uma bengala e uma cartola. Graças a esse deslumbre foi campeã do Carnaval em 1953.

A Academia tinha até um grito de guerra, que levantava o povo. Ô / Ô, Ô, Ô / Ô, Ô, Ô / A Academia chegou /. Num Carnaval – não lembro qual – a Academia foi além. Entrou na XV cantando: “Mangueira o teu cenário é uma beleza / Que a natureza criou, ô, ô / O morro com seus barracões de zinco / Quando amanhece que esplendor / todo mundo te conhece ao longe / Com o som dos teus tamborins e o rufar do teu tambor / Chegou, ô, ô, ô / ô, ô, ô / A Academia chegou /”

Nesse momento mágico do Carnaval, todos aqueles negros que desfilavam nas suas Escolas viviam um sonho; deixavam de ser pedreiros, funileiros, carregadores portuários, desempregados e se transformavam em “istas”.

A empolgação dos negros e negras, desfilando em suas Escolas de Samba, não tem similar na sociedade branca.

Não havia hora para voltar para casa. Em princípio, era na madrugada, mas havia gente que ia para casa só de manhã, com o dia claro. Não era raro, de manhã, encontrar-se um grupinho voltando para casa, alguns muito bêbados, ainda cantando.

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7 – Os carros alegóricos

O carros alegóricos só saíam à noite. Eram uma contribuição dos clubes sociais ao brilho do Carnaval, porque proporcionavam um verdadeiro desfile de obras arquitetônicas sobre rodas.

Como os carros eram sobre rodas, a tração era animal. Bois puxavam os carros, duas, três juntas de bois, o que trazia o inconveniente de sujarem a rua. Mas depois que os carros avam, vinha a limpeza pública atrás se encarregando de limpar.

Clubes sociais como o Diamantinos e o Brilhantes procuravam mostrar na rua XV a criatividade dos seus artesãos na confecção dos carros, que eram verdadeiras obras de arte, todo iluminados. Rapazes e moças sobre os carros, fantasiados, compunham o tema do carro. Em alguns carros os elementos se mexiam, tinham movimento, como em um em que as flores se fechavam e, quando abriam, surgiam ciganos fantasiados. Em outro, um moinho holandês, cujas pás se moviam, apresentava rapazes e moças fantasiados de holandeses.

Havia uma limitação de altura máxima dos carros, por causa dos fios da rede elétrica. Mas mesmo procurando cumprir o regulamento, alguns clubes excediam a altura máxima, o que os obrigava a terem auxiliares, que saíam junto aos carros com um pau comprido com uma trava, para levantar os fios na hora da agem do carro.

8 – O Carnaval dos pobres e negros

Nas calçadas, a Mal. Floriano e a Andrade Neves eram os locais de concentração dos pobres e negros, por motivos óbvios: não por racismo, mas porque eles não tinham dinheiro para pagar o aluguel das cadeiras da XV.

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Na Floriano as casas comerciais colocavam bancos nas calçadas (copiando a ideia das cadeiras da XV) e alugavam os assentos para os três dias de Carnaval.

Esse dado era o suficiente para fazer uma nova segregação: os que tinham alguma condição financeira e os que não tinham nenhuma. Não havia discriminação “racial”. Quem não podia pagar o aluguel, assistia o Carnaval de pé mesmo. Mas ninguém deixava de participar por não ter dinheiro.

Por mais pobre que fosse a família, era um motivo de orgulho fantasiar os seus filhos pequenos. Todas as crianças, por mais pobres que fossem, usavam fantasia. E pelo menos um saquinho de confete era possível comprar. Este foi um elemento importante para a manutenção da tradição do Carnaval de rua em Pelotas.

Calculava-se que dois terços da população de Pelotas participavam de alguma forma do Carnaval.

9 – O Domingo da Pinhata

O Domingo da Pinhata de Pelotas não encontra correspondência em nenhum lugar do Brasil e em nenhum país do Mundo. Só existe em Pelotas. É considerado o melhor dia do Carnaval.

Originalmente tem origem na religião católica, mas apenas pelo termo “Pinhata”, que é uma festa realizada no primeiro domingo da Quaresma. A única semelhança é esta: ser realizada no primeiro domingo da Quaresma, e por isso mesmo condenada pela igreja católica de Pelotas.

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Pelotas faz Carnaval em plena Quaresma! Um horror para a Igreja. Mas nem por isso os católicos de Pelotas deixavam de comparecer.

A cidade inteira saía pra rua. Todos brincavam. Desfilavam os blocos, os ranchos e todas as Escolas de Samba. E ressalte-se: em agradecimento, em louvor, ao que receberam do povo nos quatro dias de Carnaval (em Pelotas não são três).

O povo na rua cantava, num grito só: “É hoje só. Amanhã não tem mais!” / “É hoje só. Amanhã não tem mais!”

(*) Luiz Carlos Marques Pinheiro nasceu em Pelotas, em 12/01/1940, onde estudou nos colégios São Francisco e Pelotense. Em 1961, foi trabalhar em São Paulo, onde se casou alguns anos depois com Suzana do Couto Rosa Pinheiro, tendo duas filhas: Beatriz e Izabel (na foto, com o pai). Formou-se em Direito na Faculdade São Francisco, desempenhando atividades profissionais em várias empresas, destacando-se o Banco Bandeirantes, onde foi diretor de marketing. Faleceu em São Paulo, em 16/12/2021. Embora morando há 60 anos fora, ele adorava Pelotas e tinha um blog sobre a cidade.

Da redação: Conheci Luiz Carlos Marques Pinheiro há uns 10 anos. Ele me disse que escrevia crônicas sobre Pelotas, memórias do tempo em que viveu aqui. Na época, já há quase 50 anos morando em São Paulo capital, ele não esquecia Pelotas, para aqui sempre viajava para rever parentes e mergulhar na atmosfera da cidade. Amava sua terra Natal. Nesta semana, um primo dele, Francisco de Paula Marques Rodrigues, me contou que Luiz havia falecido e deixara um acervo de crônicas sobre a cidade – que ele, Francisco, considerava que merecia ser mais amplamente divulgado. Interessei-me em publicar, o que, com autorização de Francisco e das filhas de Luiz, farei semanalmente, uma crônica por vez. (RSA)

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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