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Rubens Amador (Pai)
Certo anoitecer, há muito, deparei-me com um mendigo ao fechar o portão da garagem. O entardecer estava lindo como em uma paisagem de Van Gogh. Pois foi neste exato momento que aquele homem mal vestido, aparentando uns 70 anos, me dirige a palavra: “Senhor, desculpe interrompê-lo, mas que tipo de grama cultiva no seu jardim? Ela é viçosa apesar da pouca luz”. “Meu caro”, respondi-lhe, ”não tenho a mínima ideia, é um senhor que vem aqui e a trata. “Fascinam-me os jardins britânicos e os fronteiros aos palácios ses. São os mais bonitos do mundo!”
Aquela altura já estava irado daquele pobre homem que mostrava ser algo mais do que aparentava. Perguntei-lhe: “Onde mora?” Prontamente respondeu-me, deixando-me cético quanto a sua lucidez: “Tenho duas residências nesta cidade. Uma de inverno, outra de verão.” E explicou, no seu jeito simpático de se comunicar: “No inverno, como agora, estou residindo na marquise de uma padaria… Meu quarto, cujo teto é feito de estrelas, fica muito aquecido a noite toda, pois desde cedo seus fornos crepitam como uma generosa lareira. Pela manhã, ao abrirem, cumprimento aos donos do estabelecimento. Sento-me com aprumo e não demora chega um delicioso café, pão e manteiga, depois de ter aberto o registro d’agua da esquina e lavado o rosto e as mãos”. “No verão, disse-me, ele se mudava para outra marquise. A de uma famosa sorveteria. Contou-me que o refrigério vindo das paredes refrescava seu corpo. E de vez em quando saia um sorvetinho. “Diariamente varro minhas duas frentes”.
“Mas o senhor não tem família?”, indaguei. Ele sorriu e disse-me: “Faço refeições em um restaurante onde pago um real por boa comida. Este homem calmo e sereno com quem conversa foi um tirano, um ébrio que muito envergonhou a esposa, principalmente os filhos pequenos. Então certo dia resolvi sumir e deixar minha família viver sem aquela pesada cruz, que era eu. Parti para cidade distante, de carona, com uma pequena trouxa de roupas e procurei sobreviver. Mas a saudade era tanta que fui tornando o vício da bebida um inimigo, como o causador que era, da minha desgraça. E daí em diante ei a tratar a todos com lhaneza e calor humano, e comecei a receber o mesmo em troca. Logo compreendi que poderia esconder o meu segredo. Queimei os meus documentos e tornei-me um mendigo de rua. ados cinco ou seis anos, a família deixou de procurar-me. Não sei o que imaginam sobre minha vida… Se estou vivo ou morto. Hoje tenho dois filhos formados: a menina é médica, e o rapaz tornou-se um excelente agrônomo (mostrou-me algumas fotos de jornal amassadas e sem legendas, onde seus filhos apareciam.) Condoído, perguntei-lhe por que não voltava para casa? Ele me respondeu que jamais iria envergonhar de novo a sua família. Chamado, compreendi que era preciso despedir-me, e encerrei aquele diálogo inusitado, perguntando ao pobre homem se necessitava de algo.
“Não meu caro, precisava apenas conversar um pouco. Hoje, o senhor ouvindo-me e dialogando comigo, não imagina o quanto me tornou feliz. Sou sozinho por opção. Há anos que vago, inserido nesta paisagem humana maravilhosa que a gente aprende a despertar nas pessoas. Tenho tudo o que necessito. “Bem, meu caro senhor, já tomei demais o seu tempo e falei muito. Obrigado por me ouvir.”
“O que vai fazer hoje, por exemplo?” indaguei, curioso àquele homem que se mostrava feliz, apesar de sua pobreza. ”Caminhar, meu amigo; e vou andar até me recolher. Talvez vá no calçadão assistir ao Jornal Nacional em uma vitrine. Boa noite, e muito prazer em conhecê-lo.”
Fiquei olhando aquele homem indo- não sei para onde- embora imaginasse qual era o seu destino naquela e em todas as noites de sua vida. Ele foi sumindo até se perder na rua, mas deixando comigo coisas para ficar pensando antes de conciliar o sono. Ao se aproximar minha mulher, perguntou-me: ”Estiveste chorando?” Não pude responder nada, só estreitei-a nos braços, acolhendo os três filhos menores que se acercaram correndo, abraçando-nos.