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Fim de tarde, vento e sol às costas, mar à frente, e eu ali, sentado na areia, no alto de uma duna, tirando o cabelo dos olhos e pensando na vida – como se não tivesse uma história para escrever.
Entretanto, foi assim, sentado, pensando na vida, ouvindo o barulho do mar e do vento, que pude assistir, ninguém me contou, a história de hoje.
Como disse, era fim de tarde: aquele horário em que o sol já perdoa a pele mas ainda ajuda a vista. Horário, fiquei sabendo depois, de um tradicional futebol entre veranistas bem conceituados.
Os participantes – atletas seria um exagero –, iam chegando em lustrosos automóveis e trocavam efusivas saudações. Todos abraçavam todos. Dividiram os times por algum misterioso critério e, uniformizados, foram à luta, ao jogo, com uma seriedade digna de espanto.
De minha parte, do alto da minha duna, a coisa mais notável ao longo dos primeiros vinte minutos, além de algumas ameaças e xingamentos, foi a aproximação, olhos fixos no jogo, do vendedor de sorvetes, vestido de palhaço. Estacionou seu carrinho, tirou a peruca e o colarinho, deu-se ao luxo de um picolé e virou assistência.
O jogo, com regras muito assemelhadas com as do futebol, diferenciava-se deste, até onde pude perceber, pela ausência total da lei do impedimento e pelo fato que, na falta de um juiz, todas as decisões eram disputadas, literalmente, no grito.
A normalidade das ações vai até o momento da lesão de quem parecia ser o craque do time onde jogava a maior autoridade em campo, o dono da bola – suas decisões não eram contestadas aos gritos. Ali, começou meu interesse.
Lesão constatada – dois aparentes médicos acorreram –, jogo parado, falta gritada e aceita, bola sob o braço da autoridade que, ansioso, dita a nova regra:
– O jogo não recomeça com um a menos!
Diante da absurda opção sentada em uma duna, restava o palhaço.
– Ô Picolé! Você joga?
Dez minutos em campo, segundo contra-ataque do time adversário e a segunda ausência de cobertura ao seu avanço, o novo jogador não se fez de rogado. Diante da perplexidade de todos, abriu os braços em direção a quem o havia convidado e gritou:
– Ô Doconvite! Dá pra correr? Vai cobrir minhas subidas ou não?
O silêncio só foi quebrado pela ofegante resposta, acompanhada de uma cabeça baixa:
– Certo! Cubro nas próximas!
Mais tarde, quando o sol e os gritos decidiram que a prorrogação teria apenas alguns minutos, o jogo estava empatado. No reinício, a bola estava com Picolé.
O dono da peruca e do colarinho ouviu o vento, não ouviu o que gritavam, não ou pra ninguém, não largou a bola, driblou tantos adversários quantos apareceram e, sorrindo, estufou as redes adversárias.
Correram todos para abraçar Picolé. Fimdo jogo.
Enquanto os carros lustrosos faziam barulho ao ir embora e o carrinho de sorvetes começava a sair da areia que se acumulara em suas rodas, desci da duna e vim escrever essa história.
Página de Vitor Bertini – AQUI.