Do Migalhas: Mais um ano acaba e, para mais uma vez pôr à prova o tradicional bom gosto dos seus críticos, o grupo Porta dos Fundos lança o seu Especial de Natal. No geral, salvo o aspecto de desenho animado, não há exatamente muitas novidades: mais um filme em que o roteiro modesto é compensado, na visão otimista de seus produtores, pelas cenas feitas para chocar e pelo tipo de humor que já seria um problema grande se a falta de imaginação não fosse um maior ainda. Quase sempre algo envolvendo moral sexual, representações de figuras sagradas em situações vexatórias (e sexuais) e outras sexualizadas circunstâncias que proclamam a sua ambição cômica pelo mero fato de estarem ali. Coisas como colocar Jesus Cristo num prostíbulo etc. De fato, se a intenção que os integrantes do grupo garantem existir já não fosse ofensiva aos cristãos, a frequente redução de dois mil anos de tradição a um manual de regrinhas sexuais já poderia ser encarada como insulto.
Mas não escrevo este texto porque quero falar sobre o filme e seus desacertos estruturais, e sim porque, por conta dele, o Poder Judiciário foi novamente chamado para decidir sobre os limites da arte e da intolerância religiosa.
O Centro Dom Bosco, uma associação de leigos católicos, há alguns dias ajuizou ação civil pública pela qual buscava coibir a divulgação da obra, que considerava extrapolar os limites aceitáveis da expressão artística, sobretudo numa época tão importante como o Natal. Segundo a petição inicial, a fronteira entre liberdade de expressão e discurso de ódio teria sido ultraada, provocando, já com a divulgação do trailer pelas redes sociais, diversos conflitos e ataques à religião cristã.
A ação, em suas próprias palavras, não propunha censura a quaisquer obras pelo mero fato de conterem críticas. Buscava impedir, em caráter excepcional, a difusão de um conteúdo no qual a ausência de fins estéticos daria espaço, sem muito mistério, ao enxovalhamento dos valores religiosos de grande parte do povo brasileiro. E para afirmá-lo partia de uma definição dada pelo E. STF na ADO 26/DF: “o discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas (…), não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão nem na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 13, §5º), que expressamente o repele” (STF, ADO 26/DF)
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Pessoalmente, não sou muito simpático à ideia de impedir que se exibam certos filmes e se publiquem certos livros, por mais polêmicos e pretensamente escandalizantes que possam parecer. Isso me faz lembrar dos que, vendo ofendida a moralidade pública do já distante século XIX, acabaram levando o romancista Gustave Flaubert e o poeta Charles Baudelaire aos tribunais ses. A absolvição do primeiro e a condenação do segundo em nada diminuíram ou aumentaram duas das maiores criações literárias da modernidade, e hoje provavelmente aquelas acusações todas produziriam, na maior parte do público, algo entre um esboço de sorriso e um bocejo de tédio. Não que seja muito razoável comparar a obra dos dois à do respeitável grupo de comédia. Mas a verdade é que as artes, todas elas, costumam ter uma liberdade maior do que as demais manifestações humanas; o que nem sempre é visto com bons olhos pela sociedade de cada época. E até aí paciência. O artista, quando realmente é um, precisa dessa flexibilidade no discurso como precondição para trabalhar.
O problema surge quando a arte da coisa está ali para fornecer um pretexto para cometer crimes ou violar direitos. E aqui a atuação do grupo católico se mostra interessante.
Volto à ação judicial para exemplificar. Em primeira e segunda instância, o pleito cautelar formulado pela associação acabou rejeitado, e uma análise crítica das razões expostas, sempre com imenso respeito aos julgadores, pode nos dar alguma clareza sobre o estado de coisas jurídico.
Para rejeitar uma intervenção primeira, foram dois os argumentos do juiz que recebeu o caso: a) não cabe ao Estado laico intervir em prol de determinados grupos contra a liberdade pregada pelo art. 5º, inciso IX, da Constituição Federal1; b) não se vislumbra discurso de ódio, mas sátira extremamente ácida. Essa posição foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em agravo de instrumento. Em ambas as decisões ficou citado o acórdão do Supremo Tribunal Federal na Rcl 38782/RJ, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, a propósito de outro Especial de Natal do Porta dos Fundos.
Entendo as razões de cada magistrado e as respeito profundamente. Embora creia, até com base em parte dos fundamentos do próprio julgado do STF, que a laicidade do Estado não seja motivo para que ele se mantenha em silêncio em face dos ataques à religião, é natural que a fronteira entre o discurso odioso e a acidez satírica não seja das mais salientes. Como diz o próprio Ministro Gilmar Mendes na decisão citada, não há do ponto de vista do Direito Constitucional Brasileiro um conceito de arte que seja seguramente aceito. Por outro lado, parece claro que um excesso de prudência ao julgar questões relativas a isso poderia acarretar uma blindagem fácil e irrefletida a qualquer crítica que, com um simples verniz artístico, disponha-se a isentar de qualquer responsabilidade os seus espertos autores. Se qualquer material escrito, plástico, audiovisual é arte pelo mero fato de o chamarmos assim, então tudo pode ser arte. E, se tudo é arte, nada é arte.
Não quero aqui discutir porém definições mais próprias da Estética ou da Filosofia da Arte, e sim questionar um ponto: a conveniência com que a flexibilizamos a depender da parte ofendida. Fosse o filme uma virulenta crítica a certos grupos de prestígio, será que a comunidade jurídica, a mídia, políticos e mesmo empresas não fariam de sua frequente indignação uma medida mais prática? Será que se, em vez de voltado às figuras mais sagradas da religião cristã, o achincalhe fosse dirigido a determinadas pessoas com poder, a fronteira da liberdade de expressão não seria prontamente relativizada?
Não que a solução para um abuso seja reparti-lo entre todo mundo. É claro que o cristianismo não vai ser destruído por um desenho de meia hora de duração – nem parece ser essa a preocupação dos que buscaram a Justiça. Mas devo dar a eles um pouco de razão por sentirem que, em qualquer circunstância, contra cristãos pode-se dizer tudo, fazer de tudo. Veem-se, em todo canto, palavras sobre a importância da religião, observações respeitosas sobre o seu papel na constituição do espírito nacional, nunca uma consequência aos que investem contra ela. Ao o que hoje – e quem sinceramente o negaria? – qualquer crítica, ou aquilo que vagamente se pareça com uma, é motivo cabal para buscar o Estado e, não raro, conseguir enquadrá-la em alguma lei. Só não goza dessa atenção o ultraje declarado do que o próprio povo considera ser o seu valor supremo: o sagrado.
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Não parece uma esquisita noção de hierarquia?
Aliás, de uma perspectiva etimológica dessa palavra (hierós ‘sagrado’ + arkhé ‘autoridade’), falar de inversão de valores já nem faz mais sentido. Seria mais honesto falar em sua progressiva abolição.
No entanto, o Direito está aí, ainda existe, e oferece meios adequados para proteger os interesses de todos os grupos. No interpretá-lo (e não falo necessariamente do Judiciário) é que parece imperar, com frequência cada vez menos surpreendente, um voluntarismo sujeito às opiniões que refletem um aspecto importante da cultura atual, não isenta de coisas positivas, mas que decididamente não é cristã. Nem exagero será afirmar que, malgrado os disfarces de polidez, ela se deixa até levar muitas vezes por um espírito fortemente anticristão.
À parte posições favoráveis ou contrárias à procedência da ação contra o Porta dos Fundos, o mais interessante parece identificar desde já certos fenômenos em que ela lança luz. Pois não é improvável que seja, em grande parte, por esse anticristianismo sutil, imperceptível, muitas vezes inconsciente e solto no ar – e que como ele se a por invisível sem deixar de movimentar as coisas -, que tudo o que se diga contra a religião entra na regra da liberdade de expressão e tudo o que se afirme de seus adversários cai na exceção a ela.
E não precisa ser cristão para ficar pelo menos um pouco preocupado com o rumo que as coisas estão tomando.
Paulo Henrique Cremonezeé advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dosTransportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que acaba com a reeleição no Brasil para presidente, governadores e prefeitos foi aprovada, nesta quarta-feira (21), na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. A PEC 12/2002 ainda aumenta os mandatos do Executivo, dos deputados e dos vereadores para cinco anos. Agora, o texto segue para análise do plenário do Senado.
A PEC previa o aumento do mandato dos senadores de oito para dez anos, mas a CCJ decidiu reduzir o tempo para cinco anos, igual período dos demais cargos. A proposta ainda unifica as eleições no Brasil para que todos os cargos sejam disputados de uma única vez, a partir de 2034, acabando com eleições a cada dois anos, como ocorre hoje.
A proposta prevê um período de transição para o fim da reeleição. Em 2026, as regras continuam as mesmas de hoje. Em 2028, os prefeitos candidatos poderão se reeleger pela última vez e os vencedores terão mandato estendido de seis anos. Isso para que todos os cargos coincidam na eleição de 2034.
Em 2030, será a última eleição com possibilidade de reeleição para os governadores eleitos em 2026. Em 2034, não será mais permitida qualquer reeleição e os mandatos arão a ser de cinco anos.
Após críticas, o relator Marcelo Castro (MDB-PI) acatou a mudança sugerida para reduzir o mandato dos senadores.
“A única coisa que mudou no meu relatório foi em relação ao mandato de senadores que estava com dez anos. Eu estava seguindo um padrão internacional, já que o mandato de senador sempre é mais extenso do que o mandato de deputado. Mas senti que a CCJ estava formando maioria para mandatos de cinco anos, então me rendi a isso”, explicou o parlamentar.
Com isso, os senadores eleitos em 2030 terão mandato de nove anos para que, a partir de 2039, todos sejam eleitos para mandatos de cinco anos. A mudança também obriga os eleitores a elegerem os três senadores por estado de uma única vez. Atualmente, se elegem dois senadores em uma eleição e um senador no pleito seguinte.
Os parlamentares argumentaram que a reeleição não tem feito bem ao Brasil, assim como votações a cada dois anos. Nenhum senador se manifestou contra o fim da reeleição.
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O relator Marcelo Castro argumentou que o prefeito, governador ou presidente no cargo tem mais condições de concorrer, o que desequilibraria a disputa.
A possibilidade de reeleição foi incluída no país no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997, mudança que permitiu a reeleição do político em 1998.
“Foi um malefício à istração pública do Brasil a introdução da reeleição, completamente contrária a toda a nossa tradição republicana. Acho que está mais do que na hora de colocarmos fim a esse mal”, argumentou Castro.
Eis um homem que irei pela absoluta coerência entre o que pensava e o modo como viveu. Um homem de esquerda que me fazia parar para ouvi-lo, porque o que dizia tinha solidez e fazia pensar.
Não precisava concordar com ele para irá-lo. E sim: um homem de esquerda que nunca roubou. Foi uma pessoa rara. Eu diria, única.
Vivia num sítio, dele de fato, com o essencial. Na companhia da mulher e de cachorros. Só tinha um defeito: andava em má companhia internacional. Talvez por um motivo humano. Para se sentir menos sozinho do que era. Menos prisioneiro de suas convicções.