“Dos Estados Unidos e Grã-Bretanha à Europa continental, Ásia e América do Sul, as democracias liberais estão em risco, enquanto o autoritarismo está em ascensão”
A historiadora e vencedora do Prêmio Pulitzer Anne Applebaum explica por que as elites democráticas de todo o mundo estão se voltando para o nacionalismo e o autoritarismo. Eleito o Livro do Ano pelo The Washigton Post e pelo The Financial Times.
Fernando Nogueira da Costa, professor Titular na UNICAMP
Anne Applebaum é vencedora do Pulitzer Prize com o livro intitulado “Crepúsculo da Democracia” (Twilight of Democracy – The Seductive Lure of Authoritarianism. Penguin Random House LLC, 2020).
Norte-americana, ela se radicou na Polônia. Seu marido, no réveillon de 1999, era vice-ministro das Relações Exteriores do governo polonês, depois foi ministro da Defesa e das Relações Exteriores. A autora é ótima contadora de histórias políticas, vivenciadas pessoalmente. Sua narrativa é cativante. A mente humana aprecia boas estórias.
Na festa do fim do milênio, os convidados acreditavam em democracia, no Estado de Direito e na Polônia. Como país-membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), estava em vias de ingressar na União Europeia, parte integrante da Europa moderna. Nos anos 90, lá, era esse o significado de estar “à direita”: os conservadores, os anticomunistas, os neoliberais – liberais pró-livre mercado sem os valores liberais clássicos de defesa dos direitos de minoria –, talvez “thatcheristas”.
Naquele momento, com a Polônia na iminência de se integrar ao Ocidente, tinha-se a impressão de todos torcerem pelo mesmo time. Concordavam sobre a democracia, o caminho para a prosperidade, e o rumo tomado pela Nação.
Publicidade
Aquele momento ou. Decorridas quase duas décadas, aquelas pessoas mudam de calçada para evitar encontros. Cerca de metade dos convidados nunca mais falaria com a outra metade. Os estremecimentos são políticos. Hoje, a Polônia é uma das sociedades mais polarizadas da Europa – uma grave cisão divide não só o que costumava ser a direita polonesa, mas também a tradicional direita húngara, a direita italiana e ainda, com certas diferenças, a direita britânica e a direita norte-americana.
Applebaum compara a situação atual com a anterior à II Guerra Mundial. A maioria dos amigos pertencentes à direita, um por um, foram atraídos pela ideologia fascista. aram a demonstrar convicção cega e arrogância ao deixar de se identificarem como europeus e arem a se qualificar como “nacionalistas de sangue e solo”. Eles descambaram para o pensamento conspiratório ou se tornaram irrefletidamente rudes.
Hoje vem ocorrendo transfiguração semelhante na Europa, onde Applebaum habita, e na Polônia, um país cuja cidadania obteve. Mesmo depois do colapso financeiro global de 2008, o país não ou por nenhuma recessão. A onda de refugiados, embora tenha atingido outros países europeus, não chegou lá. Na Polônia, não existem campos de migrantes, nem há terrorismo islâmico ou terrorismo de qualquer gênero.
Os ideólogos ultranacionalistas, talvez não sejam todas pessoas tão bem-sucedidas quanto gostariam, mas não são gente pobre nem do meio rural, nem são, de modo algum, vítimas da transição política. Tampouco constituem uma subclasse empobrecida. Ao contrário, são pessoas instruídas, falam diversas línguas e viajam para o exterior.
O que terá causado essa transfiguração? Alguns dos ex-amigos teriam sempre sido autoritários enrustidos? A explicação, infelizmente, é universal. Dadas as devidas circunstâncias, qualquer sociedade pode se voltar contra a democracia. Aliás, a julgar pela história, todas as sociedades acabarão por fazê-lo.
Todos esses debates têm em seu cerne questões políticas fundamentais. A quem cabe definir uma Nação? E a quem, por conseguinte, cabe conduzir uma Nação?
De acordo com a Psicologia Comportamental, cerca de um terço da população de qualquer país tem a chamada de predisposição autoritária. Favorece à homogeneidade e à ordem. Pode estar presente sem necessariamente se manifestar. Ao contrário dela, uma predisposição libertária, privilegiando a diversidade e a diferença, também pode estar presente silenciosamente em certo número de pessoas rebeldes.
A definição de autoritarismo não é política e não é semelhante a conservadorismo. O autoritarismo apela, simplesmente, a pessoas incapazes de tolerar a complexidade: não há nada intrinsecamente “de esquerda” ou “de direita” neste instinto. É anti-pluralista. Suspeita de pessoas com ideias diferentes. É alérgico a debates acirrados.
Publicidade
Se os possuidores derivam sua política do marxismo ou do nacionalismo, isso é irrelevante. É um estado de espírito, não um conjunto de ideias.
Mas os teóricos muitas vezes deixam de lado outro elemento crucial no declínio da democracia e na construção da autocracia. A mera existência de pessoas iradoras dos populistas demagogos ou mais confortáveis em ditaduras não explica totalmente por que os demagogos vencem.
O ditador quer governar, mas como ele atinge aquela parte do público com o mesmo sentimento totalitário? O político iliberal quer minar os tribunais para se dar mais poder, mas como ele persuade os eleitores a aceitar essas mudanças?
Nenhum autoritário contemporâneo pode ter sucesso sem os escritores, intelectuais, panfletários, blogueiros, spin doctor [assessor de político ou marqueteiro hábil em tornar a imagem deste aceitável ou simpática à opinião pública], produtores de programas de televisão e criadores de memes. Eles vendem sua imagem ao público.
Os autoritários precisam das pessoas capazes de promover o golpe eleitoral populista. Mas também precisam de pessoas capazes de usar uma linguagem jurídica sofisticada, ou seja, pessoas com argumentos para violar a constituição ou distorcer a lei.
Eles precisam de pessoas capazes de, via algoritmos encaminhados para os segmentos certos, dar voz às queixas, manipularem o descontentamento, canalizarem a raiva e o medo, propagandear uma Teoria da Conspiração e um futuro imaginário diferente. Eles precisam de membros da elite intelectual e culta. Esses cúmplices os ajudam a lançar um boicote midiático e financeiro contra o resto da elite intelectual e culta, mesmo se isso incluir seus colegas de universidade, seus colegas profissionais e seus ex-amigos.
Designo essa nossa gente com a expressão casta dos sábios-intelectuais ou sacerdotes. Os dissidentes evangélicos constituem a casta dos sabidos-pastores. Todos somos, no fundo, pregadores de ideologia e/ou religião se não respeitarmos o método científico.
Publicidade
Pior, o Estado de Partido Único Iliberal, agora o desejado por todo populista, foi desenvolvido por Lenin. O fundador da União Soviética certamente será lembrado não apenas por suas crenças marxistas, mas como o inventor dessa forma duradoura de organização política. É o modelo adotado por muitos dos atuais autocratas do mundo.
O Estado Iliberal não é uma filosofia marxista. É um mecanismo para manter o poder e funciona a favor de muitas ideologias. Funciona porque define quem pode ser a elite. Pertence à nomenclatura, isto é, está sujeito à nomeação para cargos políticos.
Nas monarquias, o direito de governar era concedido à aristocracia. Ela se definia por códigos de educação e etiqueta. Nas democracias ocidentais modernas, o direito de governar seria garantido, em tese, por diferentes formas de competição: campanha e votação, testes de méritos para o ao ensino superior e ao serviço público, mercados livres para empreendedores com iniciativa particular.
Antes, a maioria presumia a competição democrática ser a forma mais justa e eficiente de distribuir o poder. Os políticos mais competentes deviam governar. As instituições do Estado deviam ser ocupadas por pessoas qualificadas. As disputas entre elas deviam ocorrer em igualdade de condições para garantir um resultado justo.
O Estado de Partido Único, adotado por Lenin, era baseado em valores diferentes. Ele derrubou a ordem aristocrática, mas não colocou um modelo competitivo em seu lugar.
Não é apenas antidemocrático, também é anticompetitivo e antimeritocrático. Cargos em universidades, empregos de direitos civis e funções no governo e na indústria não vão para os mais trabalhadores ou mais capazes: vão para os mais leais.
Os indivíduos avançam não mais por causa do talento pessoal, mas porque estão dispostos a se conformar às regras do Partido. Essas regras geralmente excluem a ex-elite governante e seus filhos. Favorecem, por exemplo, os filhos da classe trabalhadora ou da casta de militares. Acima de tudo, favorecem as pessoas capazes de professar abertamente a fé no Partido: são militantes fieis e seguidores acríticos do líder.
Publicidade
Ao contrário de uma oligarquia comum, o Estado de Partido Único permite a mobilidade ascendente: os verdadeiros crentes podem progredir. Essa é a fonte de atração do autoritarismo para pessoasressentidas ou malsucedidas. Invariavelmente, substitui todos os talentos de primeira linha, independentemente de suas simpatias, por malucos e tolos, cuja falta de inteligência e criatividade é a garantia de sua lealdade.
O populista desdenha a ideia de um Estado Neutro com funcionários apolíticos e uma mídia objetiva. Considera a liberdade de imprensa “um engano”. Zomba da liberdade de reunião e expressão. Considera a democracia parlamentar um meio para a supressão da classe trabalhadora ou de militares. A imprensa pode ser livre e as instituições públicas podem ser justas, apenas depois de serem controladas por castas de natureza ocupacional – por meio do Partido. O populismo de direita adotou esse legado leninista.
Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.
Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.
Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.
Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.
Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.
Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.
Publicidade
Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.
No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.
Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.
Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.
Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.
Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.
Como assim caos interior?
Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.
Publicidade
A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.
Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.
Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.
É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.