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Cultura e entretenimento

A CURVA DO RIO. Por Vitor Bertini

Olá. Hoje é uma sexta-feira de um texto mais longo, de um ano interminável e de esperanças infinitas. Força na peruca! Entre uma correnteza, uma página, um gole e um bj, boa leitura e bom fim de semana

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Olá. Hoje é uma sexta-feira de um texto mais longo, de um ano interminável e de esperanças infinitas. Força na peruca! Entre uma correnteza, uma página, um gole e um bj, boa leitura e bom fim de semana.

CURVA DO RIO

Carlinhos trabalha na cidade, mas não mora na cidade.

Carlinhos gosta de pescar na curva do rio que corre nos fundos de sua casa, atrás dos eucaliptos, do outro lado das pedras, e de onde, sentado, avista o pontilhão de madeira. 

Atravessando o pontilhão, moram os que não trabalham na cidade.

Carlinhos pesca com caniço de linha e rolha, anzol pequeno e iscas de minhoca. Vai pescar sozinho, em silêncio. Antigamente, levava um radinho de pilha; hoje, leva uma térmica com café preto e um pedaço de bolo em sua velha mochila do exército.

– O segredo é a concentração na rolha. Focando nela você não perde a fisgada e esquece os problemas. – Ensina, mesmo quando o assunto não é pescaria.

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Suas idas ao rio não tem rotina. Dependem do sol, da lua, do vento, do seu humor, do clima em casa ou dos aborrecimentos da vida. Às vezes, do bolo.

Certo fim de tarde, no horário das sombras compridas, por alguma das razões ruins, lá se foi Carlinhos de caniço e mochila. Naquele dia, apesar dos ensinamentos, não havia rolha que prendesse o olho do pescador. 

E foi assim, olhando sem ver, que ele acompanhou uma mãe e seu bebê de colo caminhando devagar na estrada do velho pontilhão. Vinham da direção do sol vermelho. Quando a silhueta de contornos escuros parou no meio da ponte e levantou os braços, a correnteza fez silêncio e Carlinhos prendeu a respiração. 

Depois, o mergulho e o desespero para conseguir enxergar o bebê naquela água escura e fria. 

Criança em uma mão, calça atrapalhando os movimentos, respiração encurtando, um braço que remava, até que os pés, finalmente, encontraram pé – um pouco adiante da curva, quase embaixo do pontilhão.

O alívio com o choro da criança só não foi maior do que o espanto de ver a mãe, rosto molhado, de pé, na margem, braços abertos, esperando o filho. Um segundo de hesitação, nenhuma palavra trocada, um olhar mais demorado e lá se foram, mãe e filho. Agora, quase correndo.

Carlinhos não contou nada para ninguém e começou a ir pescar, no mesmo horário, todos os dias. Voltava ao local do espanto, procurando respostas. Esqueceu a rolha, não levava café, e não tirava os olhos da estrada e do pontilhão. Nenhum peixe, e nenhum sinal da mãe e seu bebê.

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Foi no fim do quinto dia, quando Carlinhos já pensava em ir embora, que a lenta aproximação de uma viatura da polícia trouxe, junto com uma descarga de adrenalina, a certeza de problemas. 

Estacionou a dez os do pescador que fingia olhar fixo para o rio. Desligou o motor; não desligou as luzes vermelhas que giravam sem parar. Uma eternidade depois, quase simultaneamente, o barulho de duas portas abrindo e fechando. Carlinhos transpirava.

– Esta mochila é sua? – Perguntou o primeiro policial.

A resposta foi uma cabeça acenando que sim, enquanto via o outro policial retirar uma camiseta, um emaranhado de fios de nylon e uma gaita de boca enferrujada de dentro da mochila. Silêncio.

– Você pesca sempre por aqui?

– Hum, hum.

– Pegou algum peixe hoje?

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– Não, hoje tá ruim – balbuciou Carlinhos.

– Veio ontem?

– Hum, hum.

– Antes de ontem?

– Acho que faz uma semana que venho todos os dias.

– Sei… – devolveu o segundo policial, fazendo novo silêncio.

– Algum problema? – Perguntou o dono da mochila, juntando, sacudindo e guardando o que estava espalhado.

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– Não temos certeza. Você viu alguma coisa estranha ou fora do comum acontecer por aqui nestes dias?

– Não, acho que não – respondeu Carlinhos, sacudindo a cabeça e baixando o olhar.

– Mulher? Alguma namorada pescando com você?

– Sou casado – disse entre dentes, começando a enrolar a linha no caniço.

– Estranho. Um mulher, a dona Cenira, foi lá no posto e contou uma história diferente. Disse que não aguentava mais um monte de coisa na vida, estava desesperada, não sabia o que fazer, e jogou o filho no rio. Aqui, desta ponte velha. Neste horário. Mais, disse que um homem, na descrição parecido com você, salvou a criança. Mergulhou, nadou e tudo o mais. Depois, entregou a criança para a própria dona Cenira. Ela disse que o homem salvou a criança e ela. Disse que ela precisava contar para alguém, por isso foi lá. Depois, foi embora. Nem BO quis fazer.

– Você conhece a dona Cenira? Ou uma tal de Cenira? – Perguntou o segundo policial.

– Não sabia que era esse o nome dela.

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– Quer dizer, então, que foi você? E você não achou nada estranho nisso? Não acha que esta história está mal contada?

– Foi isso que aconteceu. Não sei porque ela fez isso. – Respondeu Carlinhos olhando, pela primeira vez, nos olhos dos policiais.

– Ok, ficamos assim… Mas, atenção, abre o olho. Sabemos onde você pesca… Mas, também sabemos onde você mora. – Finalizaram os policiais, falando ao mesmo tempo, pelas janelas da viatura já em movimento. Alguns metros depois, desligaram as luzes vermelhas.

Carlinhos continuou a ir lá na curva do rio. Só não conseguia jogar a linha na água.

Assim foi, até o dia em que o vento da tardinha trouxe, outra vez, Cenira e seu bebê. Carlinhos, quase sem respirar, era só um par de olhos fixos. Ela veio pela estrada, entrou na ponte, parou no meio do caminho, olhou para a margem, deu um beijo no filho e abanou.

Carlinhos enxugou os olhos, serviu uma caneca de café, pegou um pedaço de bolo, jogou a linha na água, e focou na rolha.

***

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VITOR BERTINI

Porto Alegre, Praça Pinheiro Machado, a esquina do Lombas, Engenheiro Eletricista, Bacharel em istração, empreendedor, dirigente público em mais governos do que deveria, filhos, São Paulo, Boston, futebol, consultorias, participações institucionais, Amsterdam, Shanghai, café, Brasília, testemunha da extinção dos dinossauros e a decisão de escrever.
Contar histórias é consequência disto tudo.

Visite a ´página de Vitor: A história da Sexta.

Vitor Bertini aceitou colaborar com o Amigos.

Depois de tudo, escritor. Autor do livro "Não me Abandone" - Editora Esquina do Lobas e da página "A História da Sexta".

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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