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Opinião

O demolidor

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Conto.

Foi arrastando a perna e com a barba por fazer que o senhor Gille entrou na sala de espera do médico. Quando descobriu que eu gostava de coisas antigas, olhou-me com ar solene e anunciou, escandindo as palavras:

– Eu demoli o prédio mais bonito de Pelotas.

– ?

– O Perry – explicou o senhor Gille. E completou, dessa vez pausadamente para tornar ainda mais claro: – Eu – demoli – o – Perry. Na 15 de Novembro, ao lado da galeria.

Eu conhecia por fotos antigas o edifício de três andares, com belas colunas. O senhor Gille viu que agora sim podia prosseguir.

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– E não só o Perry – disse. – Demoli o Bule Monstro, a Livraria do Globo e a casa do Antenor Larrosa; o Cine Apolo, a Confeitaria Brasil e o palacete do doutor Pereirinha. E concluiu, num tom forçado de modéstia:

– Pra falar a verdade, demoli a cidade inteira. Em seguida puxou o lenço do bolso e assoou o nariz. Estava gripado. Esse tempo úmido é cruel com os velhos, pensei enquanto o senhor Gille se recuperava.

– Tu gostas mesmo dessas coisas? Pois vou te contar… Eu tinha uma firma de demolições… A primeira coisa nesse ramo, contou o senhor Gille, a primeiríssima coisa antes mesmo de liberar o pessoal para trabalhar, é mostrar a casa para homens entendidos e atentos, que em seu tempo o senhor Gille pessoalmente guiava um de cada vez por todas as salas e aposentos, em silêncio interrompido apenas se lhe pedissem informações sobre o material usado na construção.

“Sim, é mármore italiano”, respondia o senhor Gille, ou então (sempre havia muita madeira nobre): “É Pinho de Riga, naturalmente. Da Finlândia, o senhor sabe. Não preciso dizer, o senhor sabe”.

A demolição só podia começar depois da avaliação desses homens. O senhor Gille lembrou o nome de vários deles; muitos eu vi já velhos. Eram pessoas conhecidas e respeitadas na cidade, colecionadores particulares, donos de antiquários e marceneiros, que compravam material de demolição para decorar a casa, abastecer suas lojas ou transformar a madeira em móveis finos para serem vendidos em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Eram os clientes do senhor Gille. Corriam uns na frente dos outros para arrematar as melhores peças.

Demolição tem a ver com desmontagem, e não com destruição. Eu nunca tinha pensado nisso. É preciso retirar cada peça com cuidado para não estragar nada e reaproveitar o máximo. É um serviço de especialistas. Melhor dizendo: é um negócio de especialistas. 

– Três seis – chamaram a senha do senhor Gille.

Ele mancou até a recepção e apresentou seus documentos para a secretária do consultório. Depois, puxando a perna estropiada, voltou para a cadeira de espera, sentou-se novamente e falou:

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– Certa vez demoli uma casa que precisava ser demolida – e contou a história aterradora de duas velhinhas, tia e sobrinha, que moravam sozinhas em um casarão na Marechal Deodoro.

A tia sofria dores horríveis por causa de uma doença terminal. A sobrinha que lhe cuidava, esgotada com o prolongamento da enfermidade, resolveu matá-la. Tentou de várias formas. Primeiro, com remédios; não conseguiu. Depois, por estrangulamento; também não conseguiu. Finalmente sufocou a tia com uma almofada. Quando viu que a tia não respirava mais e estava morta, a sobrinha se enforcou com a corda de secar roupa. Demoraram dois dias para entrar na casa e descobrir as duas. Em cima da mesa da sala de jantar encontraram um bilhete da sobrinha se justificando. Quis poupar a si e a tia de mais sofrimento inútil.

Depois dessa tragédia, a família decidiu vender a casa. Os novos donos, por sua vez, chamaram o senhor Gille para demolir tudo.

– Ninguém mais vai querer morar aqui – disseram.

Sim. Não havia dúvida. A casa precisava ser demolida. 

Para o senhor Gille, aquele era um trabalho igual aos outros. Os clientes, como de costume, farejaram a demolição e vieram do mesmo jeito calado de sempre, disputando entre si os adornos de ferro, os vidros bisotê das aberturas e os mármores da escada de entrada.

Tudo corria bem até que um ajudante de obra, um grandalhão chamado Bartora, sonhou que as velhinhas continuavam na casa e não queriam a demolição. Assustado, ou a jogar água benta pelos cantos. A situação piorou quando o grandalhão começou a espalhar a história do sonho entre os operários.

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Era hora de dar um basta. O senhor Gille chamou o grandalhão Bartora. Olhando-o firme nos olhos, o senhor Gille disse com indignação:

– Como é que um cara desse tamanho pode ter medo de fantasma?

O Bartora ficou calado.

– Só o que me faltava era alguém pra acreditar em sonho. Sonhos! Que bobageira!

No dia seguinte, o senhor Gille mandou destelhar a casa inteira. A luz do dia entrou e clareou os cantos escuros e sinistros. Foi um santo remédio. O Bartora não sonhou mais e esqueceram por um tempo as velhinhas. Enquanto esperávamos o médico, o senhor Gille seguiu contando:

Depois disso, nós demolimos muitas outras lojas, residências, prédios antigos e nunca aconteceu nada. O Bartora falava que nós tínhamos mexido com o outro mundo e que íamos ser punidos. Andava ensimesmado, cheio de culpa e crendices, como se tivesse feito alguma coisa errada, e, em toda casa que entrávamos pra fazer o serviço, ele queria saber quem tinha morado lá, onde eram os quartos, a sala, que fim tinham levado as pessoas do lugar, quem tinha construído, por quê, quando, como. Um dia eu não aguentei e disse pra ele: “o que interessa isso? Quem morou aqui já está bem longe e muito melhor que nós. Se por algum motivo que não nos interessa entregou a casa pra demolição é porque não se importa mais com nada. Deixa de ser bobo. Olha os nossos clientes: eles não querem saber de nada disso”.

Quando terminamos de demolir o palacete do doutor Pereirinha – só restava de pé a fachada; era um casarão lindo na esquina da 15 – eu resolvi que era hora de dar uma lição no grandalhão.

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“Bartora”, chamei lá de cima da fachada (eram uns 8 metros de altura), “me alcança a tua Monareta”.

Sem entender o motivo, ele e um outro subiram a bicicleta numa corda.

“Vocês querem ver eu andar de Monareta em cima dessa parede de um lado até o outro?”, gritei pro pessoal no chão.

“Seu Gille, não faça isso”, respondeu o medroso do Bartora. “O senhor vai quebrar o pescoço”.

Lá de cima eu vi o medo nos olhos do Bartora. Vi os pensamentos dele tomando forma: “é hoje que os inconformados e descontentes vão se vingar do seu Gille! As duas velhinhas vão empurrar o seu Gille lá de cima, ele vai cair e vai se quebrar todo!”

Foi o pavor no rosto do Bartora que me encheu de coragem. Montei na Monareta e pedalei. Era uma casa antiga, as paredes eram largas e o topo da fachada era como uma trilha estreita à beira do abismo. Dei impulso na bicicleta e fui em frente. Me aproximava da esquina quando enxerguei areia espalhada no caminho. Eu vinha rápido demais, mal deu tempo pra reagir. É agora, pensei. Freei, o pneu da frente da bicicleta derrapou, bati o pé no cimento e consegui fazer a curva.

Quando cheguei no outro lado, joguei lá de cima a Monareta do Bartora. Ela caiu no chão com um barulho de ferro se batendo e amassando. Então eu gritei pra todo mundo ouvir: “cadê as velhas, Bartora? Cadê a vingança, a maldição?? Cadê os fantasmas que iam me pegar, seu maluco medroso?” Depois dessa nunca mais vi o Bartora. Deve ter se mudado de cidade. 

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A secretária chamou o senhor Gille antes de mim e ele entrou para ser atendido pelo médico. Enquanto aguardava minha vez, fiquei pensando na história toda: o Bartora, as velhinhas, os clientes do senhor Gille, o próprio senhor Gille e sua perna manca, a memória dos lares antigos perdida para sempre. Nascer, crescer, construir, morrer, demolir: é um círculo, o círculo do tempo, sobre o qual nos é permitido dar uma única volta, e depois desaparecer. Senti que ele, o tempo, era meu inimigo e me sufocava. Desejei detê-lo. Era nostalgia o que eu sentia.

Enquanto eu ouvia a aventura do senhor Gille pedalando a Monareta no topo da fachada, cheguei a pensar que ele tinha caído na curva da parede e machucara a perna no acidente. Achei que as velhinhas tinham se vingado. Teria saído barato, afinal era uma queda de mais de 8 metros. Poderia ter quebrado o pescoço.

Quando o senhor Gille voltou do atendimento, eu continuava esperando. Levantei-me para as despedidas.– Então hoje eu conheci o homem que demoliu o prédio mais bonito de Pelotas – falei, apertando sua mão.

Isso que eu disse não lhe caiu bem. Acho que a nostalgia tinha contaminado o senhor Gille também. Ou então as notícias do médico não tinham sido boas. Ele me olhou firme nos olhos (como deve ter feito com o grandalhão Bartora quando ele estava com medo dos fantasmas das velhinhas), largou minha mão com frouxidão e foi-se embora num silêncio murcho.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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