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Opinião

“Com a barba de molho”. Por Eduardo Affonso

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As mulheres mudam a cor do cabelo, das unhas, da boca, das pálpebras, da face.

Aos homens, resta a barba.

As mulheres usam salto alto, vestido vermelho, decote, fenda, renda, cinta-liga, espartilho.

Aos homens, resta a barba.

As mulheres siliconam os seios, lipoaspiram a barriga, embotocam o rosto, inflam os lábios, aplicam megarrér.

Aos homens, resta a barba.

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As mulheres dizem “não” quando querem dizer “sim”, dizem “não” quando querem dizer “não”, fazem chantagem emocional, perdoam traições, jamais esquecem uma traição, fingem orgasmo.

Aos homens, resta a barba.

Ilustração original de Sydney Michellete Júnior.

Não é mais preciso ser terrorista, imperador austro-húngaro ou náufrago para usar barba. Barba virou mainstream. Deixou de ser uma forma de esconder um queixo curto, disfarçar um lábio malformado ou compensar uma cara inexpressiva. Há muito que se tornou rípster, raipe, in, féchon. E também um recurso estilístico, um manifesto, uma carta de princípios.As mulheres, de uns tempos para cá, deram de fazer tudo que os homens faziam. E, claro, fazem muito melhor. Usam calça comprida, blazer, camisa de alfaiataria, perfume masculino, gravata. Quero ver usarem barba.

A barba é o que nos resta.

Usei barba, ali pelos 20 e poucos anos. Barba preta, cerrada. Eu era professor no curso de Magistério e a barba me dava certo ar… professoral.

Usei de novo por volta dos 30 — ainda preta, ainda cerrada. Estava exilado em Curitiba e a barba me deixava com cara de poucos amigos — o que era, por sinal, a mais pura verdade, porque o que eu menos tinha em Curitiba eram amigos.A barba atual veio aos 50, por preguiça, antes de virar moda. E foi ficando. Cada vez menos preta e mais rarefeita. Mas nunca nos demos tão bem. Olho o espelho e não me imagino sem ela.Gosto tanto que resolvi que ela merecia um trato. Venci o bom-senso e fui a uma dessas barbearias modernas — que, em português, se chamam “barber shop” — e que fazem barba, cabelo e bigode dos nossos pelos faciais.

Eu tinha um compromisso em São Paulo este fim de semana — o lançamento dos livros dos alunos das oficinas literárias — e queria estar apresentável. Nada melhor que chegar de barba aparada, orelha desbastada, sem essas sobrancelhas de Leonel Brizola que deram de fazer pouso acima dos meus olhos.

Entrei e pedi o básico. Mas o básico não é mais o que costumava ser. E ninguém tinha me informado disso.

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O barbeiro — barbudo e tatuado, como convém — me reclinou na cadeira, botou uma toalha sobre meus olhos, me besuntou o rosto com algo que em português de hoje se chama “balm” (preciso descobrir como se dizia isso no português do meu tempo) e deu início a uma pajelança. Teve massagem, toalha úmida, máquina, tesoura, creme, loção — e como na véspera o vizinho de baixo tinha feito bagunça até de madrugada, e eu quase não tinha dormido, foi ali, na cadeira do barbeiro, que em algum momento eu peguei no sono.

Acordei quando senti o pincel espalhando talco pelo meu pescoço. A cadeira foi erguida lentamente e… quem era aquele cara no espelho, usando uma camisa igual à minha

Não o pimentão, barulho, pernilongo, falácia, desodorante íntimo e barba desenhada. Pois lá estava eu, livre de todo o resto, mas com barba desenhada.

Um mix de padre pop e cantor sertanejo; de Falcon da terceira idade e Mr. Gay Azerbaijão.

Isso foi na quarta. Quando este texto estiver sendo postado, já terei sido alvo de comentários mentais do tipo “No Zoom ele me parecia uma pessoa tão sensata…” ou “O que será que o analista dele disse disso? ”. A barba de um homem é seu castelo. Vai levar pelo menos um mês até que a minha deixe de ser esse bangalô e retome a antiga dignidade.

Fica a dica: se for ao barbeiro, não durma.

* Eduardo Affonso é colunista de O Globo. Com ok dele, o Amigos republica textos do face.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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