2m452i
Conto.
Faz muito tempo, eu te disse, mas até hoje, de vez em quando, ainda penso na noite em que minha mãe e eu decidimos penhorar o boizinho de ouro do meu pai. O boizinho esse era um troféu que o velho ganhou na aposentadoria. A ideia de penhorar foi minha, por isso ainda me culpo por não ter conseguido recuperar a peça do banco. Minha mãe nunca me disse nada, mas sempre achei que nunca me perdoou, mesmo que meu pai já tivesse morrido na época.
Para teres uma ideia do que acontece, sábado fui almoçar com Natália. São muito ricos, como te disse. Moram numa mansão aqui perto. Eu não queria ir, não gosto muito de reuniões familiares. Mas namoramos há algum tempo, os pais dela queriam me conhecer, não tive como recusar. Na hora do almoço, aconteceu uma coisa. Como não estou acostumado com festas nem com ambientes de gente rica, me atrapalhei com a quantidade de talheres. Não sabia quais deveria usar. Enquanto eu tentava descobrir as peças certas, notei que dois irmãos de Natália se cutucaram e riram. Aquilo ficou atravessado na minha garganta, tanto que perdi a fome, embora tenha continuado a comer. Então, no meio do almoço, houve um momento em que me senti hipnotizado pelos talheres de ouro reluzindo nos raios filtrados pelo parreiral acima de nós. Vi pedaços do meu rosto, um olho, refletidos nos garfos e nas facas. Levantei a cabeça, olhei em volta da mesa. Encarei aqueles felizes, o revoar das cortinas da mansão, e achei que eu não me encaixava no cenário. Depois do almoço, dei uma desculpa qualquer e voltei para casa. Me fechei no apartamento e continuei o que fiz um pouco além da conta no almoço. Bebi até que o sol começou a se pôr. Depois, debruçado na janela, fiquei observando o trânsito. Fiquei vendo os prédios, as pessoas lá embaixo. Olhando o movimento do rio, voei no tempo. De repente, meus olhos não viam mais as águas do rio. Viam agora o canal dos fundos da nossa antiga casa, a casa da minha infância. Revi o boizinho reluzindo nas mãos do pai. Lembrei de quando, da minha cama de armar, eu observava ele e minha mãe tomando café antes que o galo cantasse. Eu ficava com os olhos semicerrados, por isso eles achavam que eu dormia. O pai se aproximava de mim no escuro, me fazia um carinho no rosto e dizia baixinho: “Ainda serás um grande homem”. Depois, me cobria melhor com o cobertor, prendia a ponta das cobertas debaixo dos meus pés, e saia na bicicleta para o matadouro.
***
O que vou te dizer agora, nunca contei para ninguém. Eu devia ter uns nove anos de idade, mas ainda não sabia o que o pai fazia no abatedouro. Um dia, sem a mãe saber, fui lá no trabalho dele. Contornei os aramados do lugar. Rastejei, feito um lagarto, pela grama. De repente, vi meu pai. Ele gritava com os homens e com os bois. Os animais mugiam em fila, num corredor de madeira. Vi que meu pai ergueu lá no alto uma marreta e congelou, feito uma estátua. Então, em seguida, com um golpe seco, ele marretou com toda força dos músculos a cabeça do boi, que tombou. E depois marretou outro e mais outro e ainda outro. Quando voltei para casa, minha mãe pensou que eu estava doente. Antes de ir estender roupas no varal, me acomodou na cama deles…. Quando o pai chegou do trabalho, era de noite. Ainda posso ouvir os os dele estalando a madeira do assoalho. Ele entrou no quarto devagar, sentou na beirada da cama e ficou olhando para mim por um bom tempo. Devia estar me dizendo coisas com o pensamento. Ergueu a mão, acariciou meus cabelos e perguntou: “O que tens filho?” Eu queria responder, mas as palavras estavam presas na minha garganta; de lá, desceram para o estômago. Então o pai fez uma coisa que nunca tinha feito. Ele me abraçou forte contra o peito. Nessa hora botei para fora todo o meu desespero. Não pela boca, pois as palavras ficaram presas em algum lugar dentro de mim. Chorei até adormecer nos braços do meu pai, que seus patrões chamaram de certeiros e infalíveis antes de entregarem a ele o troféu.