Amigos de Pelotas

A beleza cerca de Montevideu 684a4w

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Duas estudantes entraram na loja para reclamar.

– Nós viemos pedir pra tirar o pôster da vitrine.

Que pôster? Por quê?

– O da mulher. Ele nos ofende.

Era uma foto em preto e branco de uma mulher em pose sensual. A modelo estava parcialmente vestida; de costas nuas, mostrava a linha do seio e só. O resto era sugestão.

– É um modelo irreal e inatingível. Humilha mulheres de carne e osso como nós que amos na calçada. Mas não é só a nós mulheres que faz mal. Quando uma criança vê uma imagem dessas ela cresce buscando um ideal impossível que vai fazer dela uma Mulher Adulta Infeliz! Bulímica, anoréxica e neurótica. Um objeto miserável do mundo machista patriarcal.

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Ok. Escondam a Vênus de Milo no depósito do Louvre, arranquem as páginas dos livros de arte com majas desnudas. As belas: sumam com elas. A beleza: esqueçam três milênios de platonismo e elogio do ideal.

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A melhor definição de beleza encontrei em uma estante estreita de uma pequena livraria em Montevideu. Os livros não tinham muita ordem e estavam uns sobre os outros, então era preciso pegar um por um para ver do que tratavam. “El libro de las preguntas”, encontrei no fundo de uma pilha. Neruda tem um livro com esse título, mas esse era outro livro de outro autor. “Que es la belleza? La belleza es la promesa de felicidad.” Guardei essa linda resposta na cabeça até hoje. É uma citação de Stendhal. E é também puro Platão.

***

Meu pai veio me ver dias atrás.

– Estou indo para o Uruguai depois do almoço. Vem junto – convidou.

Há dez anos ele não aparecia, desde que pedi para ele não vir mais a minha casa. Ele vinha no meio da noite quando todos estavam dormindo e entrava no quarto do meu filho para ver o neto. Meu filho tinha dois anos e acordava assustado com a visita daquele estranho de madrugada. Acordava e chorava desesperado.

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Agora, depois de tantos anos, meu pai está de volta. Como de costume no meio da noite.

– Estás morando em Montevideu, pai?

– Cerca de Montevideu.

Fui com ele. Tínhamos tanto o que falar. Até o Chuí não seria suficiente para ouvir como era a vida cerca de Montevideu e para eu contar tudo que tinha acontecido em dez anos, mesmo eu falando aos borbotões. Muita água ou debaixo da ponte. Minha vida mudou muito.

Montevideu

– Pai, eu sinto como se estivesse remando num barco furado.

As brigas, as acusações, a falta de dinheiro. Eu precisava desabafar e chorar e finalmente encontrei com quem. Foi o que fiz. Me desmanchei.

– Calma. Tu estás dando o melhor de ti. Estás fazendo tudo pelo melhor. Isso é o que importa. Tu estás cansado. A única coisa que precisas é de descanso. Cerca de Montevideu… – ele continuou, contando alegremente das caminhadas nos campos, dos mates à tardinha, das mil e uma maneiras que eu tinha de descansar cerca de Montevideu.

– Meu filho – disse ele -, pra enxergar melhor é preciso tomar distância dos problemas.

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Chegamos na aduana uruguaia quando já anoitecia. Do lado de lá soprava um vento frio e limpo que quando senti pela primeira vez respirei fundo para encher os pulmões com o cheiro da noite escura e dos bosques de pinheiros de Santa Tereza quilômetros à nossa frente.

– Quando tu eras pequeno – meu pai falou antes de descer do carro – tua mãe te dava banho e depois te sentava no meu colo pra eu segurar as tuas mãos e te aquecer. Lembras disso?

Sim. Sim. Mil vezes sim! O colo do meu pai. Como esquecer? O colo do meu pai: o carinho e a confiança; a palavra certa na hora certa; o incentivo; a fé na gente; minhas mãozinhas gordinhas e geladas dentro das mãos grandes e quentinhas do meu pai.

Ao lado do prédio decrépito e mal iluminado da aduana, sozinho dentro do carro, eu choro e sinto como se estivesse finalmente me curando de uma doença há muito incubada no peito. A dor de não ter com quem falar de verdade, o mal da falta de intimidade, de falar e ser mal compreendido ou maliciado. O peso de estar sempre errado e ser sempre o culpado. De se esforçar ao máximo e nunca ser o suficiente.

Depois de alguns minutos meu pai voltou com os documentos carimbados. — Tudo ok. Hora de atravessar — disse já dentro do carro.

Mas eu não podia ir junto. Tinha que voltar.

– Pai, meu filho me espera. Eu preciso voltar. Com sorte eu consigo uma carona e chego antes da meia noite. Adeus, pai! A Deus, meu pai!

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E foi isso. Não atravessei a fronteira. Fiquei do lado de cá e vi o carro acelerar na estrada reta e negra e sumir do lado de lá quando cruzou com um carro que vinha do sul.

O que é a beleza? Não sei dizer o que ela é. Sei o que é paz no coração. Eu a entrevi quando era criança, depois do banho, sentado no colo do meu pai… A paz…

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