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Cultura e entretenimento

A beleza cerca de Montevideu

“Chegamos na aduana uruguaia quando já anoitecia. Do lado de lá soprava um vento frio e limpo que quando senti pela primeira vez respirei fundo para encher os pulmões”

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Duas estudantes entraram na loja para reclamar.

– Nós viemos pedir pra tirar o pôster da vitrine.

Que pôster? Por quê?

– O da mulher. Ele nos ofende.

Era uma foto em preto e branco de uma mulher em pose sensual. A modelo estava parcialmente vestida; de costas nuas, mostrava a linha do seio e só. O resto era sugestão.

– É um modelo irreal e inatingível. Humilha mulheres de carne e osso como nós que amos na calçada. Mas não é só a nós mulheres que faz mal. Quando uma criança vê uma imagem dessas ela cresce buscando um ideal impossível que vai fazer dela uma Mulher Adulta Infeliz! Bulímica, anoréxica e neurótica. Um objeto miserável do mundo machista patriarcal.

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Ok. Escondam a Vênus de Milo no depósito do Louvre, arranquem as páginas dos livros de arte com majas desnudas. As belas: sumam com elas. A beleza: esqueçam três milênios de platonismo e elogio do ideal.

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A melhor definição de beleza encontrei em uma estante estreita de uma pequena livraria em Montevideu. Os livros não tinham muita ordem e estavam uns sobre os outros, então era preciso pegar um por um para ver do que tratavam. “El libro de las preguntas”, encontrei no fundo de uma pilha. Neruda tem um livro com esse título, mas esse era outro livro de outro autor. “Que es la belleza? La belleza es la promesa de felicidad.” Guardei essa linda resposta na cabeça até hoje. É uma citação de Stendhal. E é também puro Platão.

***

Meu pai veio me ver dias atrás.

– Estou indo para o Uruguai depois do almoço. Vem junto – convidou.

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Há dez anos ele não aparecia, desde que pedi para ele não vir mais a minha casa. Ele vinha no meio da noite quando todos estavam dormindo e entrava no quarto do meu filho para ver o neto. Meu filho tinha dois anos e acordava assustado com a visita daquele estranho de madrugada. Acordava e chorava desesperado.

Agora, depois de tantos anos, meu pai está de volta. Como de costume no meio da noite.

– Estás morando em Montevideu, pai?

– Cerca de Montevideu.

Fui com ele. Tínhamos tanto o que falar. Até o Chuí não seria suficiente para ouvir como era a vida cerca de Montevideu e para eu contar tudo que tinha acontecido em dez anos, mesmo eu falando aos borbotões. Muita água ou debaixo da ponte. Minha vida mudou muito.

Montevideu

– Pai, eu sinto como se estivesse remando num barco furado.

As brigas, as acusações, a falta de dinheiro. Eu precisava desabafar e chorar e finalmente encontrei com quem. Foi o que fiz. Me desmanchei.

– Calma. Tu estás dando o melhor de ti. Estás fazendo tudo pelo melhor. Isso é o que importa. Tu estás cansado. A única coisa que precisas é de descanso. Cerca de Montevideu… – ele continuou, contando alegremente das caminhadas nos campos, dos mates à tardinha, das mil e uma maneiras que eu tinha de descansar cerca de Montevideu.

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– Meu filho – disse ele -, pra enxergar melhor é preciso tomar distância dos problemas.

Chegamos na aduana uruguaia quando já anoitecia. Do lado de lá soprava um vento frio e limpo que quando senti pela primeira vez respirei fundo para encher os pulmões com o cheiro da noite escura e dos bosques de pinheiros de Santa Tereza quilômetros à nossa frente.

– Quando tu eras pequeno – meu pai falou antes de descer do carro – tua mãe te dava banho e depois te sentava no meu colo pra eu segurar as tuas mãos e te aquecer. Lembras disso?

Sim. Sim. Mil vezes sim! O colo do meu pai. Como esquecer? O colo do meu pai: o carinho e a confiança; a palavra certa na hora certa; o incentivo; a fé na gente; minhas mãozinhas gordinhas e geladas dentro das mãos grandes e quentinhas do meu pai.

Ao lado do prédio decrépito e mal iluminado da aduana, sozinho dentro do carro, eu choro e sinto como se estivesse finalmente me curando de uma doença há muito incubada no peito. A dor de não ter com quem falar de verdade, o mal da falta de intimidade, de falar e ser mal compreendido ou maliciado. O peso de estar sempre errado e ser sempre o culpado. De se esforçar ao máximo e nunca ser o suficiente.

Depois de alguns minutos meu pai voltou com os documentos carimbados. — Tudo ok. Hora de atravessar — disse já dentro do carro.

Mas eu não podia ir junto. Tinha que voltar.

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– Pai, meu filho me espera. Eu preciso voltar. Com sorte eu consigo uma carona e chego antes da meia noite. Adeus, pai! A Deus, meu pai!

E foi isso. Não atravessei a fronteira. Fiquei do lado de cá e vi o carro acelerar na estrada reta e negra e sumir do lado de lá quando cruzou com um carro que vinha do sul.

O que é a beleza? Não sei dizer o que ela é. Sei o que é paz no coração. Eu a entrevi quando era criança, depois do banho, sentado no colo do meu pai… A paz…

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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