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Cultura e entretenimento

O SONHO DE MARDUK

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Crianças sonham pela primeira vez só depois dos dois anos. Eu lembro do meu primeiro sonho. Eu dormia no meio dos meus pais; abri os olhos e era dia; um alçapão se abriu no teto e uma televisão baixou.

Quando acordei na manhã seguinte, não havia alçapão nem tv. Apenas o lustre de sempre estava preso no teto do quarto. Surpresa para mim: existiam outros mundos além daquele onde eu vivia, a infância, e eu percebi que em algum momento no futuro eu deveria procurá-los.

Babilônia

Também houve um primeiro sonho de todos os sonhos já sonhados. Foi Marduk quem o teve, quando o planeta estava em sua infância, e era povoado por trilobitas, animais marítimos da era paleozoica com forma de caranguejo e escorpião.

Marduk sonhou que era uma poça de água sobre um chão de granito. O céu estava nublado, havia acabado de chover e o calor tinha abrandado. De primeiro, o sonho não o intrigou. Marduk gostou de ser uma poça de água. “Por que gostei?”, ele se perguntou depois, o que levou-o a pensar que a poça era de água doce e que o mundo era de água salgada e algo podia — e tinha de — ser feito.

Então Marduk quebrou o trilobita Tiamat. Com a carapaça de suas costas de caranguejo fez o céu acima do mar. Com seu abdômen de escorpião afastou as águas salgadas e fez a terra seca e as rochas de todos os tipos, basaltos, arenitos, granitos, onde poderiam agora poças existir fora do sonho.

Mas por que gostar de ser uma poça de água sobre a laje de granito? Este é um daqueles sonhos recorrentes, como o sonho de estar caindo ou voando, e que muitas pessoas têm. Marduk o teve diversas vezes. Eu já o sonhei.

Todos o sonhamos sem parar porque nunca foi completamente interpretado. Então ele sempre volta e voltará. Para que a sensação de poça de água seja desvelada.

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Foi Marduk quem criou os babilônios, não porque quisesse companhia, mas para fazerem todo o trabalho do mundo.

E foi a interpretação dos babilônios que evidenciou a solidão de Marduk. A sensação de poça de água agradou Marduk, mas preocupou os babilônios a solidão, e mais que a solidão, ter Marduk gostado dela. Ninguém podia gostar de verdade de ser uma poça de água. Falta algo. Por isso construíram um zigurate para que Marduk habitasse o templo em seu topo, no meio do burburinho do povo lá embaixo, e toda a gente da Mesopotâmia pudesse endeusá-lo. Durante milênios alternaram sacerdotisas no alto do zigurate da Babilônia: uma pela manhã, para amar Marduk; outra à tardinha, para conversar com ele; e a terceira após o anoitecer, para aquecer o leito do templo. Para os babilônios três sacerdotisas eram necessárias para a felicidade de Marduk — e uma pia de granito onde ele repousar.

Quando Nabucodonosor II conquistou o Reino de Judá, os hebreus foram exilados na Babilônia. Lá conheceram e sonharam a poça de água sobre granito. Sua interpretação foi sucinta. Resume-se no segundo versículo do Gênesis: “A terra, porém, estava vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas.” Para os hebreus, era bom o sentimento da poça porque Deus paira sobre ela.

Muitos outros sonhadores ainda vão refletir sobre o significado do sonho até ele ser decifrado. Estudarão a natureza da água, suas propriedades, solvência, capilaridade, tensão superficial. Examinarão a evaporação da gota de café sobre a mesa da copa: como o café se acumula em uma borda marrom à medida que a água evapora. Descobrirão que a erva de arinho suga a seiva do jacarandá, e uma vez que o fluxo de água até as folhas seja interrompido, o galho morre, apodrece e tomba.

Tudo em busca do sentido do sonho da poça de água sobre a laje de granito.

A Babilônia caiu. Marduk está esquecido. O sonho continua. Tenho esperança que alguém acorde no meio da noite com o significado na ponta da língua.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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