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Cultura e entretenimento

“Em matos fechados e florestas abertas”. Por Marcos Macedo

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Meu avô era ligado em animais. Ganhei dele uma fazendinha com cercas, moinho, galinhas e vaquinhas vermelhas com manchas brancas.

Floresta Negra, Alemanha

— Existem vacas, bois e touros — ele mostrou. — As vacas têm quatro tetas; os touros têm uma bola no meio das pernas e os bois não têm nada.

— Bola no meio das pernas? — eu queria entender bem. — Que bola? Onde? No meio da perna? No joelho? — procurei no boizinho.

Meu avô me deu também um petiço oveiro e deixou eu escolher o nome: Tornado, o cavalo do Zorro. Quando conheci o petiço, tinham mudado o nome de Tornado para Ciclone. Em Herval não havia tornados, no máximo tormentas. Até o nome chegar lá terminou diferente, como naquela brincadeira de telefone sem fio.

— Pra montar, antes tu conversa com o cavalo e a a mão no pescoço. Ele gosta que faça carinho no pescoço. — ensinou meu avô. — Pra ele andar, atira beijinhos.

No início eu só andava a cavalo no cercado da casa, atirando muitos beijinhos pro meu petiço, que por sinal gostava mais de ficar parado do que andar. Só depois dos 10 anos minha mãe deixou eu sair pro campo.

Uma tarde eu voltava da casa do meu tio quando numa curva do caminho o Ciclone resolveu atalhar pelo meio do mato. O mato era fechado, os galhos das árvores eram baixos e eu me arranhei todo.

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— Pára, Ciclone, vamos pelo caminho, pelo meio do mato não! — eu gritei, mas não adiantou. 

Cheguei em casa puxando o petiço e fui direto fazer queixa do Ciclone para minha mãe.

— Ele não me ouviu, mãe. Eu pedi, mas ele não me ouviu — eu chorei. Minha amizade com o Ciclone era sofrida e cheia de pequenos conflitos como esse. 

— Se tu não segurares firme as rédeas, não vais poder mais sair do cercado — disse minha mãe. 

No dia seguinte, enquanto eu colocava o enxergão e o pelego e apertava a cincha, conversei com meu petiço, como meu avô tinha ensinado. 

— A partir de agora — comecei cheio de dedos, mas depois fui firme — EU vou escolher o caminho por onde vamos, Ciclone. Nada de atravessar o mato.

Existem instantes de virada na vida da gente (o amor à primeira vista, o nascimento do filho, a morte do pai), depois dos quais nada é mais o mesmo, e esse foi um momento desses: o instante em que termina uma amizade.

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Quando o Ciclone percebeu do que eu falava, ou a olhar como se não me enxergasse, como se eu não estivesse ali falando com ele, a me ignorar solenemente. Eu procurava seu olhar para nos entendermos e via com dor no coração que ele me mostrava apenas o branco de seus enormes olhos. Se fazia de ocupado ou distraído com outra coisa qualquer.

Eu tinha cometido um pecado que um amigo não pode nunca cometer. Antes tão íntimos, não havia pensamento de um que não fosse compartilhado com o outro. E agora eu agia sem ao menos consultá-lo.

Agora eu tomava decisões sozinho — e ele que fizesse o que quisesse. 

Estávamos cada um por si. Cada um em seu caminho. E por causa disso um muro se ergueu entre nós e eu a partir daquele dia sofri as consequências da minha arrogância.

Em protesto, ou por decepção, ou por um resquício de dignidade, ou tudo isso, quem sabe?, depois desse dia o Ciclone se restringiu a uma interação protocolar e muda comigo. Um segurar o freio para estacar, um toque de calcanhar para galopar, o milho batendo no fundo do balde para vir comer. Sem brincadeiras de faroeste nem eios animados. Nossa antiga amizade, antes tão forte, murchou para isso, uma casca vazia. Mágoa. Pois assim terminam as amizades delicadas: em silêncio e mágoa. E culpa. Um emaranhado de sentimentos tão atados e espinhosos como o mato onde o meu petiço entrou, eu me arranhei todo e foi o estopim desse desfecho triste.

Tudo isso deve ter pesado no fundo da minha consciência durante 40 anos, porque fiquei fascinado com as florestas alemãs da série Dark do Netflix. Mais que o enredo complexo, fui fisgado pelas paisagens da Floresta Negra, pelo detalhe que lá pode-se caminhar, andar de bicicleta e até cavalgar entre as árvores com troncos distantes uns dos outros, como em Bárbaros, outra série alemã do Netflix. Bem diferente do mato fechado bordeado de maricás e pitangueiras onde meu petiço entrou e eu me arranhei. Me falaram que as pequenas cidades alemãs lembram Gramado. Claro, é o que Gramado tenta ser, uma pequena cidade alemã.  Em Dark há uma cena chave na qual Jonas e seus amigos tomam banho num lago, tal como contam que faziam antigamente no Lago Negro de Gramado. Me pareceu uma vida mais ligada à natureza, mais feliz e que nos faz falta. Sem os maricás floridos em março e as pitangueiras carregadas de frutinhas amarelas, vermelhas e roxas em novembro, mas com menos arranhões e amizades desfeitas. O Ciclone poderia atalhar a galope por dentro da Floresta Negra e eu nem teria uma história para contar.

***

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Agora vem a parte curiosa. Gostei tanto de Dark que busquei outros filmes e séries alemãs na internet. Quis saber o enredo de um filme recente, Jugend ohne Gott (Juventude sem Deus), e numa associação aleatória o google relacionou um texto alemão de anthropologische Theologie, uma interpretação antropológica do livro do Gênesis, que não tinha nada a ver com o filme, mas me interessou. Bem, pelo menos a parte que eu acho que entendi. Meu alemão é básico; tive de usar o tradutor do computador. O resultado foi algo entre o absurdo sem sentido e uma revelação fantástica, não sobre matos fechados nem florestas negras, mas sobre um jardim. O Jardim do Éden. 

A tese básica do texto alemão é que o Gênesis, a história da Criação, do Jardim do Éden, de Adão e Eva, deve ser interpretada como um estudo do homem e não de Deus ou da relação entre Deus e o homem. Ou seja, a Bíblia é sobre o homem, não sobre Deus. E a chave dessa suposta verdade é a afirmação de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Se somos imagem e semelhança de Deus, então quando a Bíblia fala de Deus, fala sobre o que nós somos, sobre a vida humana e suas sutilezas e peripécias. 

São dezenas de páginas repletas de interpretações fantásticas, se é que eu entendi bem as ideias do autor alemão. Entre elas a de que não fomos expulsos do Jardim do Éden; foi Deus que se afastou de nós para nosso próprio bem. Como, à imagem do Deus Criador, somos também criadores, mas, diferente Dele, não sabemos o que criamos, se é bom ou mau, nós humanos não amos esse Deus onisciente que conhece o resultado às vezes catastrófico do que criamos. Somos ignorantes e conviver com Deus é ter essa ignorância esfregada a todo momento na nossa cara. Inável. Para que continuássemos livremente criando, para não nos constranger ou paralisar, Deus achou por bem tomar distância de nós e foi-se embora.

Quer dizer: não fomos expulsos de lugar nenhum; Deus se afastou para nos deixar à vontade. Vivemos no Jardim do Éden e não sabemos. Não há culpa: o pecado original é apenas uma invenção de Santo Agostinho e somos todos inocentes, pelo menos até começarmos a fazer nossas bobagens.

A gente pode pensar uma vida inteira sobre as bobagens que fez e nunca chegar a uma conclusão. O Ciclone, por exemplo. Podia eu ter agido diferente? Deixar a rédea solta e viver arranhado? Os matos do RS não são aqueles lindos bosques de abetos e carvalhos da Floresta Negra com galhos altos e troncos afastados. Ou deveria ter me contentado com os limites do cercado para não correr nenhum perigo? Não era melhor o Ciclone me ouvir um pouco que fosse? Perdoar?

Somos todos ignorantes vivendo sem saber no Jardim do Éden.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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