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Cultura e entretenimento

“Não queria me queixar dos meus vizinhos”

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Tenho sido muito injusto com meus vizinhos. Não devia me queixar deles, mas agradecer-lhes do fundo dos cafundós da minh’alma.

O vizinho de baixo deve saber que moro sozinho e tenta me enturmar fazendo festas na varanda, de modo que pareça haver 20 pessoas na minha sala. No meu sofá. Abrindo minha geladeira e pegando minha última latinha de cerveja.

Deve saber que fico zapeando na Netflix sem achar quase nada interessante, então compartilha comigo as laives sertanejas. Se sacrifica, altruisticamente, ouvindo-as num volume que lhe há de avariar os tímpanos, só para que eu possa escutar tudo perfeitamente onde quer que eu esteja no meu apartamento.

A vizinha de cima deve saber que não malho, e faz o possível para me incentivar a abandonar o sedentarismo. Ela poderia se exercitar em qualquer lugar, mas prefere fazê-lo na varanda, logo de manhã cedo, de maneira que a música de academia (tum tum tum), os pesos caindo no chão (TUM TUM) e as batidas ritmadas na laje (piso dela, teto meu) não me deixem dúvidas de que eu tinha que estar queimando calorias, não tentando completar, a duras penas, as 8 horas de sono.

Ela deve intuir que eu viva em total solidão, e se apiedar deste ermitão desgarrado. Por isso toda noite, ali por volta das 23h, faz questão que eu saiba que não estou sozinho no mundo. Que há alguém por perto.

Outra mais abusada ligaria para dizer “boa noite, vizinho; se precisar de algum coisa, estou aqui”. Mas ela é educada demais para telefonar para um desconhecido a essa hora e, talvez, parecer incômoda. Então arrasta os móveis: cama, mesa, cadeiras, sofás, geladeira, cômoda.

Devo estar exagerando. Como o barulho é bem acima da minha cabeça, suponho que arraste só a cama, o armário embutido e a mesinha de cabeceira.

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Pela manhã, depois da malhação, sabendo que não tenho amigos nem família, faz questão que eu participe de todas as suas ligações telefônicas. Jamais telefona da sala, do quarto ou – para dizer coisas mais íntimas – sentada no banheiro. Debruça-se na varanda, e me põe a par de todos os seus assuntos, por inteiro.

Os vizinhos do prédio em frente certamente estranham que eu não tenha gosto musical – já que nunca ouviram nenhum som a mais de 500 decibéis oriundo aqui do meu cafofo. Isso explica sua generosidade em dividir comigo, tão efusivamente e com tanto gosto, o gosto que têm. “Pé na areia, caipirinha, água de coco, cervejinha. Pé na areia, água de coco, beira do mar”, repetem – uma, dez, cem, cem mil vezes, todo fim de semana, talvez receosos de que eu ainda não tenha decorado a letra e por isso continue, silencioso, aqui no meu canto.

Supõem que eu não tenha dinheiro para comprar carne, e churrasqueiam não só nas churrasqueiras mas também nas varandas, repartindo comigo o cheirinho da sua proteína animal.

E eu, ingrato, ainda reclamo. Mas eles sabem que quando escrevo aqui e no livro de ocorrências para reclamar, é porque os amo. Quando digo que não quero mais essa muvuca, é porque eu quero. Eu tenho medo de abrir meu coração e confessar que estou em suas mãos, e não posso imaginar o que vai ser de mim se eu me mudar um dia.

Por isso, chega de mentiras, de negar o meu desejo. Eu quero mais que tudo ouvir – noite adentro – funk, sofrência e sertanejo. Eu entrego a minha vida para os vizinhos (de baixo, de cima, da frente) fazerem o que quiserem de mim. Só espero que isso – assim como minha ingratidão – um dia tenha fim.

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Eduardo Affonso

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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