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Cultura e entretenimento

“Onde tudo isso vai parar?”

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Sinceramente, não sei onde isso tudo vai parar.

Harold Ramim (Bill Murray) se instala num hotelzinho e começa a notar, a cada dia que acorda, que os mesmos acontecimentos do dia anterior se repetem, um loop diário permanente, prisioneiro ad eternum de um mesmo dia.

Hoje (quarta-feira, 15), numa entrevista, João Gabbardo, coordenador executivo do Centro de Contingência da Covid-19 do Estado de São Paulo, disse que os próximos dois meses da pandemia no Brasil serão muito difíceis. Até a primavera? Se for assim, teremos atravessado três estações, um tipo de Via Crucis.

Rigorosamente, não está fácil para ninguém, em qualquer profissão, sem falar nos desempregados e nos desalentados, todos sem horizontes. Há noites, por exemplo, em que minha vontade é de dormir para sempre, nunca mais acordar, só para não ter de enfrentar mais uma jornada de cobertura das marmotas, com aquelas caras de paisagem e aqueles dentinhos obcecados em roer. Acontece que a gente acorda.

Quem trabalha com notícia, depois dos profissionais de saúde, está no grupo dos que sofrem um pouco mais, talvez. O meu caso é mais confortável que o dos médicos e enfermeiros. Trabalho em home office, distante do núcleo do problema, embora atingido por ele. Há anos vivo uma espécie de quarentena, sozinho no escritório, ao ponto de ter me familiarizado com a solidão.

O problema é ter de interiorizar o drama, ser obrigado a tentar raciocinar antes de escrever sobre os horrores, as truculências, os absurdos, enfim, as imperfeições. Em certos dias, sinto uma tremenda angústia, uma ausência, como talvez tantas pessoas. É um pouco como em uma guerra. Há momentos de relativa calma, mas, de vez em quando, soa a sirene alertando da aproximação de bombardeiros inimigos, e como que procuramos o primeiro abrigo até que o ataque cesse.

Com a progressão do número de infectados e das mortes, inclusive de pessoas que conhecemos, a ansiedade se intensifica. Todo santo dia tem o tal Dia da Marmota, angustiante como quando, querendo acordar de um pesadelo, parece que não vamos conseguir.

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Em geral, quando escrevo, procuro sintetizar o pensamento com o objetivo de dizer mais com menos palavras, deixando de propósito sob as palavras coisas não ditas, acreditando que o leitor perceba. Aprecio a síntese, do mesmo modo que o extrato de um vidrinho de perfume. Nem sempre acho que consigo, como talvez não tenha conseguido neste. Ocorre que, desde sempre, sinto necessidade de me expressar.

Chaplin, o pequeno grande homem, em sua autobiografia, diz que a representação artística vem da infância e tem a ver com uma necessidade psicológica de ativar as emoções. Num trecho, registra mais ou menos assim: “Quando crianças, gostamos de fingir de mortos em lutas de mentira. Tomamos um tiro e caímos desacordados por alguns momentos”. Para ele, esse mecanismo do comportamento está na base do cinema. Quando assistimos a um filme de terror, mesmo sabendo que é de mentirinha, buscamos mobilizar em nós o medo, a surpresa, e por aí outras emoções, e assim é, deduzo, porque essas emoções nos lembram que estamos vivos. O jornalismo parece movido pelo mesmo mecanismo.

Chaplin era uma pessoa muito sensível, com algo de messiânico na personalidade. A mãe morreu louca, a avó também. No filme sobre sua vida, Anthony Hopkins faz o papel de seu biógrafo e, numa cena, pergunta ao Charlie velho até que ponto os genes da loucura lhe influenciaram a criatividade para dar vida a uma obra única em forma artística e sentimento, sem ser vulgar. O ator que interpreta Chaplin (Robert Downey Jr.) responde: “Eu não sei. Talvez… Uma coisa sempre me acompanhou: a sensação de que, por mais que procurasse fazer uma obra de arte, e conseguisse, algo me dizia que eu não havia sido bom o bastante, que alguma coisa me faltara para a perfeição. Que no fundo eu era um vagabundo. É humano…”.

Na excepcionalidade da pandemia, esse sentimento de “incompletude” de que ele fala, essa inconformidade com a vida, quando se repete, que Feitiço do Tempo plasmou, talvez comum a todos, parece, hoje, um nervo exposto.

Jornalista e escritor. Editor do Amigos de Pelotas. Ex Senado, MEC e Correio Braziliense. Foi editor-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Atuou como consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Uma vez ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, é autor dos livros Onde tudo isso vai parar e O fator animal, publicados pela Editora Lumina, de Porto Alegre. Em São Paulo, foi editor free-lancer na Editora Abril.

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3 Comments

3 Comments

  1. Fernanda

    19/07/20 at 13:24

    Belíssimo texto “Onde tudo isso vai parar”!. Espécie de tentativa de elaboração de um “certo absurdo” por nós vivido hoje (e talvez de outros absurdos já experimentados por cada uma e cada um de nós na vida), que nos chega como via para seguirmos acreditando e criando
    possíveis. Parabéns!

  2. Paulo Kelbert

    16/07/20 at 11:29

    Uma das mais emocionantes agens da vida de Chaplin, já famoso, saiu pelos fundos do hotel de luxo, tomou um taxi e foi a Pownall Terrace, visitar o lugar onde se criou, um cortiço pobre. Fez-se a reflexão de que milagre havia ocorrido em sua vida de mudar sua história.De outro lado, ,lhe doía a impotência de não ter podido socorrer a incurável doença materna e a ausência do pai. Chaplin, em sua vida e obra, pouco fala do pai que se faz representar pelas figuras de autoridade tendo como alvo o desprezo e deboche. Sua figura de vagabundo mistura carinho e esperança. Venceu a depressão da mãe e o descompromisso do pai. O vagabundo é generoso na música, no afeto e no incurável romantismo. Todos seus filmes retratam uma luta do bem com o mal. Tenho em conta que a biografia de Charles Spencer Chaplin deve ser lida como um livro de profundo saber.

    • Rubens Spanier Amador

      16/07/20 at 23:05

      Teu comentário foi fiel aos fatos. Concordo com o que observas tão bem, com boa memória e evidente afeto. Um abração, Paulo. Valeu!!!

Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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