Connect with us

Cultura e entretenimento

Para quando pudermos tirar as máscaras

Publicado

on

PERA, UVA & MAÇÃ (ou PARA QUANDO PUDERMOS TIRAR AS MÁSCARAS)

Não sei de onde ou quando vem o costume de abraçar. Deve estar no DNA. Animais se abraçam, e nascemos sabendo nos abraçar também – ou, pelo menos, querendo um colo, um chamego, um cafuné.

O abraço é um rivotril natural, sem necessidade de receita azul. Um liberador automático de ocitocina, uma terapia antiestresse ao alcance da mão. E — até outro dia — sem nenhuma contraindicação.

Agora temos que nos abraçar sem nos tocar. A dois metros de distância. O que é mais ou menos um metro a mais do que o braço — ou o calor do peito – alcança.

Não é justo que logo quando amos pelo maior estresse da nossa geração, abraços — aqueles gostosos, compridos, apertados — estejam fora de cogitação.

Também não faço ideia desde quando exista o beijo. Nas cavernas há desenhos de caçadas, mamutes, bisões — e beijo nenhum. Tampouco nas inscrições egípcias ou astecas. Mas beijos já aparecem em textos hindus e no antigo testamento (“Beija-me o meu amado com os beijos da tua boca, pois seus afagos são melhores do que o vinho mais nobre”). Ou seja, beijamo-nos pelo menos desde mais de mil anos antes de Judas.

Os gregos, claro, se beijavam (e como!). Em Roma, onde se gurmetizou tudo que vinha da Grécia, não havia o beijo, mas os beijos. O “osculum”, que era o da amizade (uma espécie de selinho); o “basium”, de amor (de onde nos chegaram o beijo, o beso, o baccio); e o “savium”, o de língua, volúpia e vergonha. Este último, a Igreja se empenhou em combater — e a língua portuguesa, infelizmente, desdenhou.

Publicidade

Mas se o beijo ficou muito tempo à alcova, em público ninguém se pejava de beijar o pé do santo, a mão do rei. E não há quem me convença de que não houvesse ali uma lasquinha de lascívia — é através da boca que descobrimos o mundo, matamos a fome e a sede, somos apresentados ao prazer.

Os primeiros brasileiros não se beijavam — aprenderam a técnica com os portugueses (a quem, em troca, ensinaram o banho). Os japoneses — que ainda mantêm o hábito de só se beijar na intimidade — até há pouco tempo sequer dispunham de uma palavra para o beijo. Tiveram que importar uma, e daí nasceu o “kissu”.

Mas por que estou falando de beijo? Porque, assim como o abraço, ele também virou comportamento de risco. Mandam-se beijos, mas sem que os lábios se encontrem, sem que o doce da saliva de quem ama se misture ao sal da saliva do ser amado. São beijos virtuais, beijos da boca pra fora.

E se demorar demais a vacina? E se não derem certo a quarentena, o álcool em gel, a cloroquina? Haverá, em alguns anos, quem pergunte o que estão fazendo aquelas duas pessoas na escultura do Rodin. O que Marisa Monte queria dizer com “Beija eu”, Orlando Silva com “Lábios que beijei”, Tom Jobim com “E veio aquele beijo”.

Ficamos, não bastasse, sem o aperto de mão. O gesto ancestral de boa vontade, de mostrar-se desarmado. Mas como apertar a mão se a arma que trazemos pode estar oculta de nós próprios?

Talvez tenhamos uma geração que não ouse brincar de pera, uva ou maçã. Que precise descobrir novos sinais para demonstrar que vem em paz, que está feliz por encontrar, e não consiga dizer “eu te amo” sem usar palavras (não, coraçãozinho com as mãos não vale).

Acostumemo-nos às máscaras (as de tecido, não as sociais). Só convém tirá-las quando pudermos, enfim, nos abraçar, nos beijar, nos apertar de novo as mãos.

Publicidade

Eduardo Affonso

Publicidade
Clique para comentar

Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

Publicado

on

Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

Publicidade

Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

Continue Reading

Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

Publicado

on

Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

Publicidade

A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

Publicidade

Continue Reading

Em alta

Copyright © 2008 Amigos de Pelotas.

Descubra mais sobre Amigos de Pelotas

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter o ao arquivo completo.

Continue reading