Em uma entrevista ao Le Monde, o sociólogo e filósofo considera que a corrida pela rentabilidade, assim como as carências do nosso modo de pensar, são responsáveis por inúmeros desastres humanos causados pela pandemia da Covid-19.
A reportagem é de Nicolas Truong, publicada por Le Monde, 20-04-2020. A tradução da versão italiana publicada por finesettimana, é de Moisés Sbardelotto.
Nascido em 1921, ex-combatente da resistência, sociólogo e filósofo, pensador transdisciplinar e indisciplinado, doutor honoris causa de 34 universidades em todo o mundo, Edgar Morin, desde o dia 17 de março, está confinado no seu apartamento em Montpellier, na companhia da sua esposa, a socióloga Sabah Abouessalam.
É da Rua Jean-Jacques Rousseau, onde reside, que o autor de “La Voie” (2011) e de “Terra-Pátria” (1933), que publicou recentemente “Les souvenirs viennent à ma rencontre” (Ed. Fayard, 2019), obra de mais de 700 páginas nas quais o intelectual recorda, profundamente, as histórias, os encontros e os “magnetismos” mais fortes da sua existência, redefine um novo contrato social, entrega-se algumas confissões e analisa uma crise global que o “estimula enormemente”.Edgar Morin
A pandemia devido a essa forma de coronavírus era previsível?
Todas as futurologias do século XX que previram o futuro ao transportar para o futuro as correntes que atravessam o presente entraram em colapso. No entanto, continuamos prevendo 2025 e 2050, enquanto somos incapazes de compreender 2020. A experiência das irrupções do imprevisto na história ainda não penetrou nas consciências. Ora, a chegada de um imprevisível era previsível, mas não sua natureza. Daí a minha máxima permanente: “Espere o inesperado”.
Além disso, eu era daquela minoria que previu catástrofes em cadeia provocadas pelo desencadeamento descontrolado da mundialização tecnoeconômica, incluindo as decorrentes da degradação da biosfera e da degradação das sociedades. Mas eu absolutamente nunca previ a catástrofe viral.
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Houve, no entanto, um profeta dessa catástrofe: Bill Gates, em uma conferência de abril de 2012, anunciando que o perigo imediato para a humanidade não era nuclear, mas sim sanitário. Ele havia visto na epidemia do Ebola, que pôde ser rapidamente controlada por acaso, o anúncio do perigo global de um possível vírus com forte poder de contaminação, expôs as medidas de prevenção necessárias, incluindo um equipamento hospitalar adequado. Mas, apesar dessa advertência pública, nada foi feito nos Estados Unidos nem alhures. Pois o conforto intelectual e o hábito têm horror das mensagens que os incomodam.
Como explicar o despreparo francês?
Em muitos países, incluindo a França, a estratégia econômica just-in-time, substituindo a da estocagem, deixou nosso sistema de saúde desprovido de máscaras, de instrumentos de testes, de aparelhos respiratórios; isso, junto com a doutrina liberal que comercializa os hospitais e reduz seus recursos, contribuiu para o curso catastrófico da epidemia.
Em que tipo de imprevisto essa crise nos coloca?
Essa epidemia nos traz um festival de incertezas. Nós não temos certeza sobre a origem do vírus: mercado insalubre de Wuhan ou laboratório vizinho, ainda não sabemos as mutações que o vírus sofre ou poderá sofrer durante a sua propagação. Não sabemos quando a epidemia regredirá e se o vírus permanecerá endêmico. Não sabemos até quando e até que ponto o confinamento nos fará sofrer impedimentos, restrições, racionamentos. Não sabemos quais serão as consequências políticas, econômicas, nacionais e planetárias das restrições trazidas pelos confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, uma mistura dos dois: estamos indo rumo a novas incertezas.
Essa crise sanitária planetária é uma crise da complexidade?
Os conhecimentos se multiplicam exponencialmente, de repente, transbordam a nossa capacidade de nos apropriarmos deles e, acima de tudo, lançam o desafio da complexidade: como confrontar, selecionar, organizar adequadamente esses conhecimentos, conectando-os e integrando a incerteza. Para mim, isso revela mais uma vez a carência do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar aquilo que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que forma um todo ao mesmo tempo uno e diverso. Com efeito, a revelação fulgurante das convulsões que sofremos é que tudo o que parecia separado está ligado, pois uma catástrofe sanitária catastrofiza em cadeia a totalidade de tudo o que é humano.
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É trágico que o pensamento disjuntivo e redutivo reine supremo em nossa civilização e detenha o comando da política e da economia. Essa formidável carência conduziu a erros de diagnóstico, de prevenção, assim como a decisões aberrantes. Eu acrescento que a obsessão pela lucratividade entre nossos dominantes e dirigentes levou a economias culpadas, como nos hospitais, e ao abandono da produção de máscaras na França. Na minha opinião, as carências no modo de pensar, combinadas com o domínio incontestável de uma sede frenética de lucro, são responsáveis por inúmeros desastres humanos, incluindo aqueles ocorridos desde fevereiro de 2020.
Tínhamos uma visão unitária da ciência. No entanto, multiplicam-se em seu interior os debates epidemiológicos e as controvérsias terapêuticas. A ciência biomédica se tornou um novo campo de batalha?
É mais do que legítimo que a ciência seja convocada pelo poder para lutar contra a epidemia. Porém, os cidadãos, inicialmente tranquilizados, sobretudo por ocasião do remédio do professor Raoult, descobrem em seguida opiniões diferentes e até contrárias. Cidadãos mais bem informados descobrem que certos grandes cientistas têm relações de interesse com a indústria farmacêutica, cujos lobbies são poderosos junto a ministérios e à mídia, capazes de inspirar campanhas para ridicularizar as ideias não conformes.
Lembremo-nos do professor Montagnier, que, contra pontífices e mandarins da ciência, foi, com alguns outros, o descobridor do HIV, o vírus da Aids. Essa é a oportunidade para compreender que a ciência não é um repertório de verdades absolutas (ao contrário da religião), mas que as suas teorias são biodegradáveis sob o efeito de novas descobertas. As teorias aceitas tendem a se tornar dogmáticas nas cúpulas acadêmicas, e os desviantes, de Pasteur a Einstein, ando por Darwin, e Crick e Watson, os descobridores da dupla hélice do DNA, são os que fazem as ciências progredirem. É que as controvérsias, longe de serem anomalias, são necessárias para esse progresso. Mais uma vez, no desconhecido, tudo progride por tentativa e erro, assim como por inovações desviantes inicialmente incompreendidas e rejeitadas. Essa é a aventura terapêutica contra os vírus. Os remédios podem aparecer onde menos eram esperados.
A ciência é devastada pela hiperespecialização, que é o fechamento e a compartimentalização dos saberes especializados, em vez da sua comunicação. E são sobretudo pesquisadores independentes que estabeleceram desde o início da epidemia uma cooperação, que agora se alarga entre infectologistas e médicos do planeta. A ciência vive de comunicações, toda censura a bloqueia. Portanto, devemos ver as grandezas da ciência contemporânea ao mesmo tempo que as suas fraquezas.
Em que medida podemos tirar proveito da crise?
Em meu ensaio“Sur la crise” (Ed. Flammarion), tentei mostrar que uma crise, além da desestabilização e da incerteza que traz, se manifesta pelo fracasso das regulações de um sistema que, para manter sua estabilidade, inibe ou reprime os desvios ( negativo). Deixando de ser reprimidos, esses desvios ( positivo) tornam-se tendências ativas que, se se desenvolverem, ameaçam cada vez mais desregular e bloquear o sistema em crise. Nos sistemas vivos e especialmente sociais, o desenvolvimento vitorioso dos desvios que se tornaram tendências levará a transformações, regressivas ou progressivas, até mesmo a uma revolução.
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A crise em uma sociedade suscita dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de soluções novas. O segundo é a busca de um retorno a uma estabilidade ada ou a adesão a uma salvação providencial, assim como a denúncia ou a imolação de um culpado. Esse culpado pode ter cometido os erros que provocaram a crise ou pode ser um culpado imaginário, bode expiatório que deve ser eliminado.
Com efeito, ideias desviantes e marginalizadas estão se espalhando confusamente: retorno à soberania, Estado de bem-estar social, defesa dos serviços públicos contra as privatizações, relocalizações, desmundialização, antineoliberalismo, necessidade de uma nova política. Personalidades e ideologias são identificadas como culpadas.
E também vemos, na carência dos poderes públicos, uma profusão de imaginações solidárias: produção alternativa à falta de máscaras por empresas reconvertidas ou confecção artesanal, reagrupamento de produtores locais, entregas gratuitas em domicílio, ajuda mútua entre vizinhos, refeições gratuitas para sem-teto, creches; além disso, o confinamento estimula as capacidades auto-organizadoras para remediar através da leitura, da música, dos filmes a perda de liberdade de movimento. Assim, autonomia e inventividade são estimuladas pela crise.
Estamos assistindo a uma verdadeira tomada de consciência da era planetária?
Espero que a excepcional e mortífera epidemia que estamos vivendo nos dê a consciência não apenas de que somos conduzidos para o interior da incrível aventura da Humanidade, mas também de que vivemos em um mundo ao mesmo tempo incerto e trágico. A convicção de que a livre concorrência e o crescimento econômico são panaceias sociais universais escamoteia a tragédia da história humana que essa convicção agrava.
A loucura eufórica do trans-humanismo leva ao paroxismo o mito da necessidade histórica do progresso e do domínio do homem não apenas sobre a natureza, mas também sobre o seu destino, ao prever que o homem terá o à imortalidade e controlará tudo pela inteligência artificial. Ora, nós somos jogadores/jogados, possuidores/possuídos, poderosos/fracos. Se podemos atrasar a morte por envelhecimento, jamais poderemos eliminar os acidentes fatais em que nossos corpos serão esmagados, jamais poderemos nos livrar das bactérias e dos vírus que se automodificam sem cessar para resistir aos remédios, antibióticos, antivirais, vacinas.
A pandemia não acentuou a reclusão doméstica e o fechamento geopolítico?
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A epidemia global do vírus desencadeou e, entre nós, agravou terrivelmente uma crise sanitária que provocou os confinamentos que sufocam a economia, transformando um modo de vida extrovertido em uma introversão para dentro de casa e colocando em uma crise violenta a mundialização. Esta havia criado uma interdependência, mas sem que ela fosse acompanhada de solidariedade. Pior, ela provocou, em reação, confinamentos étnicos, nacionais, religiosos que se agravaram nas primeiras décadas deste século.
Desde então, na ausência de instituições internacionais e até europeias capazes de reagir com uma solidariedade de ação, os Estados nacionais se voltaram para si mesmos. A República Tcheca até reteve máscaras destinadas à Itália, e os Estados Unidos conseguiram desviar para si mesmos um estoque de máscaras chinesas inicialmente destinadas à França. A crise da saúde, portanto, desencadeou uma engrenagem de crises que se concatenaram. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, ando pela economia, do individual ao planetário, ando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um minúsculo vírus em um vilarejo ignorado na China desencadeou a perturbação de um mundo.
Quais são os contornos dessa deflagração mundial?
Como crise planetária, ela coloca em destaque a comunidade de destino de todos os humanos, ligada inseparavelmente com o destino bioecológico do planeta Terra. Ela intensifica simultaneamente a crise de humanidade que não consegue se constituir em humanidade. Como crise econômica, ela abala todos os dogmas que governam a economia e ameaça se agravar em caos e penúrias no nosso futuro. Como crise nacional, ela revela as carências de uma política que favoreceu o capital em detrimento do trabalho, sacrificando a prevenção e a precaução para aumentar a rentabilidade e a competitividade. Como crise social, ela traz à tona cruamente as desigualdades entre aqueles que vivem em pequenas habitações povoadas de crianças e pais, e aqueles que puderam fugir para a sua segunda residência no campo.
Como crise civilizacional, ela nos leva a perceber as carências em termos de solidariedade e a intoxicação consumista que a nossa civilização desenvolveu; e nos pede que reflitamos sobre uma política de civilização (“Une politique de civilisation”, com Sami Naïr, Ed. Arléa, 1997). Como crise intelectual, ela deveria nos revelar o enorme buraco negro na nossa inteligência, que torna invisíveis para nós as evidentes complexidades do real.
Como crise existencial, ela nos leva a nos interrogar sobre o nosso modo de vida, sobre as nossas verdadeiras necessidades, sobre as nossas verdadeiras aspirações mascaradas nas alienações da vida cotidiana, a diferenciar entre a diversão pascaliana que nos desvia das nossas verdades e a felicidade que encontramos na leitura, na escuta ou na visão de obras-primas que nos fazem encarar de frente o nosso destino humano. E, acima de tudo, ela deveria abrir os nossos espíritos, há muito tempo confinados ao imediato, ao secundário e ao frívolo, para o essencial: o amor e a amizade pela nossa realização individual, a comunidade e a solidariedade dos nossos “eu” convertidos em “nós”, o destino da Humanidade da qual cada um de nós é uma partícula. Em suma, o confinamento físico deveria favorecer o desconfinamento dos espíritos.
O que é o confinamento? E como o senhor o vive?
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A experiência do confinamento domiciliar duradouro imposto a uma nação é uma experiência inédita. O confinamento do gueto de Varsóvia permitia que seus habitantes lá circulassem. Mas o confinamento do gueto preparava para a morte, e o nosso confinamento é uma defesa da vida.
Eu o o em condições privilegiadas, apartamento térreo com jardim, onde eu posso me alegrar ao sol com a chegada da primavera, muito protegido por Sabah, minha esposa, com vizinhos gentis que fazem as nossas compras, comunicando-me com meus próximos, meus afetos, meus amigos, solicitado pela imprensa, rádio ou televisão para dar o meu diagnóstico, o que pude fazer pelo Skype. Mas eu sei que, desde o início, as inumeráveis pessoas em moradias apertadas am mal a superlotação, que os solitários e principalmente os sem-teto são vítimas do confinamento.
Quais podem ser os efeitos do confinamento prolongado?
Eu sei que um confinamento prolongado será cada vez mais vivido como um impedimento. Os vídeos não podem substituir permanentemente as idas ao cinema, os tablets não podem substituir permanentemente as visitas às livrarias. Skype e Zoom não permitem o contato carnal, o tilintar do copo quando brindamos. A comida doméstica, mesmo excelente, não suprime o desejo de um restaurante. Os documentários não suprimem o desejo de ir aos lugares para ver as paisagens, as cidades e os museus, eles não tirarão o meu desejo de reencontrar a Itália e a Espanha. A redução ao indispensável também dá a sede do supérfluo.
Eu espero que a experiência do confinamento modere a inquietação compulsiva, a fuga para Bangcoc para trazer recordações para contá-las aos amigos. Eu espero que contribua para reduzir o consumismo, ou seja, a intoxicação consumista e a obediência à incitação publicitária, em prol de alimentos saudáveis e saborosos, de produtos duradouros e não descartáveis. Mas serão necessárias outras incitações e novas tomadas de consciência para que ocorra uma revolução nesse âmbito. No entanto, há a esperança de que a lenta evolução iniciada se acelere.
Na sua opinião, o que será aquilo que chamamos de “mundo do depois”?
Em primeiro lugar, o que guardaremos nós, cidadãos, o que guardarão os poderes públicos da experiência do confinamento? Apenas uma parte? Tudo será esquecido, anestesiado ou folclorizado? O que parece muito provável é que a propagação do digital, amplificado pelo confinamento (teletrabalho, teleconferências, Skype, usos intensivos da internet), continuará com seus aspectos ao mesmo tempo negativos e positivos, que não são o tema desta entrevista.
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Vamos ao essencial. A saída do confinamento será o começo da saída da megacrise ou o seu agravamento? Boom ou depressão? Crise econômica enorme? Crise alimentar mundial? Continuação da mundialização ou recuo autárquico?
Qual será o futuro da mundialização? O neoliberalismo abalado retomará o controle? As nações gigantes se oporão mais do que no ado? Os conflitos armados, mais ou menos atenuados pela crise, se exacerbarão? Haverá um ímpeto internacional para salvar a cooperação? Haverá algum progresso político, econômico, social, como ocorreu logo após a Segunda Guerra Mundial? O despertar da solidariedade provocado durante o confinamento se prolongará e se intensificará, não apenas para médicos e enfermeiras, mas também para os últimos da fila, os coletores de lixo, os estoquistas, os entregadores, os caixas, sem os quais não teríamos sido capazes de sobreviver, enquanto conseguimos sobreviver sem o Medef (Movimento das Empresas da França, na sigla em francês) e o CAC 40 (índice da Bolsa que reúne as 40 maiores empresas da França)?
As inúmeras e dispersas práticas de solidariedade de antes da epidemia serão amplificadas? As pessoas que saírem do confinamento retomarão o ciclo cronometrado, acelerado, egoísta, consumista? Ou haverá um novo apogeu da vida convivial e amorosa rumo a uma civilização em que a poesia da vida se desdobra, em que o “eu” desabrocha em um “nós”?
Não podemos saber se, após o confinamento, o comportamento e as ideias inovadoras retomarão o seu impulso, se revolucionarão a política e a economia, ou se a ordem abalada se restabelecerá.
Nós podemos temer fortemente a regressão geral que já estava em curso durante os primeiros 20 anos deste século (crise da democracia, corrupção e demagogia triunfantes, regimes neoautoritários, impulsos nacionalistas, xenófobos, racistas).
Todas essas regressões (e, na melhor das hipóteses, estagnações) são prováveis enquanto não aparecer a nova via político-ecológico-econômico-social guiada por um humanismo regenerado. Esta multiplicaria as verdadeiras reformas, que não são cortes no orçamento, mas sim reformas de civilização, de sociedade, ligadas a reformas de vida.
Ela associaria (como indiquei em “La Voie”) os termos contraditórios: “mundialização” (para tudo o que é cooperação) e “desmundialização” (para estabelecer uma autonomia alimentar e sanitária, e salvar os territórios da desertificação); “crescimento” (da economia dos bens essenciais, do durável, da agricultura familiar ou orgânica) e “decrescimento” (da economia do frívolo, do ilusório, do descartável); “desenvolvimento” (de tudo o que produz bem-estar, saúde, liberdade) e “envolvimento” (nas solidariedades comunitárias).
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O senhor conhece as perguntas kantianas – O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? O que é o homem? –, que foram e continuam sendo as da sua vida. Que atitude ética devemos adotar diante do imprevisto?
O pós-epidemia será uma aventura incerta, em que se desenvolverão as forças do pior e as do melhor, sendo estas últimas ainda fracas e dispersas. Saibamos, enfim, que o pior não é certo, que o improvável pode advir, e que, no combate titânico e inextinguível entre os inimigos inseparáveis que são Eros e Thanatos, é saudável e enérgico ficar do lado de Eros.
Sua mãe, Luna, foi acometida da gripe espanhola. E o trauma pré-natal que abre o seu último livro tende a mostrar que isso lhe deu uma força vital, uma extraordinária capacidade de resistir à morte. O senhor ainda sente esse impulso vital no coração mesmo diante desta crise mundial?
A gripe espanhola deu à minha mãe uma lesão no coração e o conselho médico de não ter filhos. Ela tentou dois abortos, o segundo falhou, mas a criança nasceu quase asfixiada, estrangulada pelo cordão umbilical. Posso ter adquirido no útero as forças de resistência que permaneceram comigo a minha vida toda, mas só pude sobreviver com a ajuda de outros, o ginecologista que me deu tapas durante uma meia hora antes que eu lançasse o meu primeiro grito, depois a sorte durante a Resistência, o hospital (hepatite, tuberculose), Sabah, minha companheira e esposa. É verdade que o “impulso vital” não me abandonou; até aumentou durante a crise mundial. Toda crise me estimula, e esta, enorme, me estimula enormemente.
Que artigo brilhante e lição de vida associada. Morin é um pensador moderno e futurista. Lida de modo otimista com a tragédia com lucidez genial. É para ser lido e relido, cada palavra tem peso de experiência vital e dedicação profunda a causa humana. Rompe com idealizações e retrata a realidade como promissora a despeito dos pessimistas. Os corajosos tem lugar no pensamento de Morin, afinal, sua insistência em sobreviver ao trauma do parto, tornou sua vida um desafio diário. Ele triunfou ao primeiro dia de sua vida. Os decorrentes, já tinha energia para enfrentar.
Noutro dia escrevi um texto sobre a cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem, responsabilizando parcialmente as novas tecnologias de comunicação. Disse: “Se por um lado as tecnologias deram voz à sociedade, por outro, nos têm distraído da concretude do mundo, de interação mais hostil, levando-nos a viver em mundos paralelos”. E: “No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades, mas sim no mundo virtual, um refúgio, retroalimentado pelo algoritmo, onde não há frustrações, mas sim gratificações instantâneas”. Bem, esse é um lado da questão. E não é novo.
Desde Freud se sabe que, diante do trauma, a criança dissocia-se para á-lo, refugiando-se na neurose, uma estratégia de defesa. Pois, assim como a criança abalada pelo trauma, as pessoas, diante das escalabrosidades do mundo concreto, fazem igual: elas podem se retirar para o mundo virtual, guardando, daquele, uma distância.
O outro lado da questão, o reverso da moeda, é que, sem as novas tecnologias de comunicação, a voz traumatizada da sociedade permaneceria atravessada na garganta, sem chance de extravasar-se.
A possibilidade de expressão liberou uma carga de justos ressentimentos contra os limites da política, as injustiças, o teatro social. De súbito, tivemos uma ideia do tamanho da insatisfação com os sistemas de vida, ando publicamente a protestar, em alguns casos chegando à revolução, como ocorreu na Primavera Árabe, onde as redes sociais cumpriram um papel fundamental.
Pois não é por outra razão que os donos do antigo mundo estão incomodados e querem controlar a liberdade de expressão, especialmente a velha imprensa, os monopólios empresariais, os sistemas políticos totalitários. Enfim, todos aqueles para quem a internet e as redes sociais ameaçam seu poder, ao por de pernas pro ar as certezas convenientes sobre as quais se assentaram.
Fato. As inovações desarranjam os mercados e os modos de vida. Toda inovação faz isso. É o preço do progresso. Mas, assim como é impossível voltar ao tempo do telégrafo (imagine o desespero nas Bolsas de Valores), é impensável retroagir ao mundo exclusivo da prensa de Gutenberg. Porque as descobertas, afinal, permitem avançar nos arranjos produtivos: propiciam economia de tempo, dinheiro e, no caso da comunicação, ampliam a liberdade, seu bem mais precioso. Pode-se dizer que não estávamos preparados para tanta liberdade súbita, e que venhamos, neste momento, usando-a “mal”. Contudo, parece razoável dizer que, à medida que o tempo e, estaremos mais e mais preparados para lidar com a liberdade e seus efeitos.
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Com todos os defeitos que a vida tem, é preferível mil vezes, ao controle da palavra, a liberdade de dizê-la. Quem pode afirmar (ou julgar) o que é verdadeiro e o que é falso, senão as pessoas mesmas, em última análise, de acordo com suas percepções e as pedras em seus sapatos? Pois hoje, depois de provarmos a liberdade trazida pelas novas tecnologias, mais do que nunca sabemos que a imprensa, em sua mediação da realidade, é falha, e como o é!
É interessante (e triste) ver como, após a criação da internet e das redes, grande parte da imprensa, ao perder o monopólio da verdade, se vêm tornando excessivamente opinativa e crítica das novas tecnologias. Deveria, sim, era aprimorar-se no trabalho para prestá-lo melhor. Acontece que — eis o ponto — como a velha imprensa não é livre de fato, como depende do financiador, muitas vezes de governos, ela vê nas novas tecnologias de ampla liberdade uma ameaça à velha cadeia de produção acostumada a filtrar o que valia ser dito, e o que não valia, em seu óbvio interesse, hoje nu, como o rei da história.
Além de tudo, há essa coisa interessante: a percepção. Para alguns pensadores do novo mundo, o que chamamos de realidade é uma simulação, no que concordo. Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros, paladares etc. não existem no mundo concreto (são imateriais), sendo portanto simulações percebidas pelos sentidos (pessoas veem cores em diferentes matizes, quando não divergentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado exclusivo dos nossos sentidos. Assim, a única coisa real seria a razão. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. “Penso, logo existo”.
Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos com que amos o mundo concreto, estando entrelaçados, não haveria diferença entre eles. Logo, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor. Eu acredito que é assim.
Uma vez provadas as inovações, não é possível retroagir. Podemos, isso sim, é refinar, em decorrência delas, o nosso comportamento.
Algo mudou na relação entre o jornalismo e os pelotenses. Até por volta de 2015, havia um marcado interesse nos assuntos da cidade. Um mero buraco, e nem precisava ser o negro, despertava vívida atenção. Agora já ninguém dá a mínima. Nem mesmo se o buraco for um rombo fruto de corrupção numa área de vida e morte, como a de saúde. O valor da notícia sofreu uma erosão nas percepções. Não é uma situação local, mas, arrisco dizer, do mundo.
Vem ocorrendo uma cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem. Um corte entre elas e a vida social. O espaço, que no ado era público, já hoje parece ser de ninguém.
A responsabilidade parcial disso parece, curiosamente, ser das novas tecnologias de comunicação. Se por um lado elas deram voz à sociedade como um todo, por outro, ao igualmente darem amplo o ao mundo virtual, elas nos têm distraído da concretude do mundo, de interação sempre mais hostil — distraído, enfim, da realidade mesma, propiciando que vivamos em mundos paralelos.
Outra razão é que, no essencial, nada muda em nossa realidade. Isso ficou mais evidente porque as redes sociais deram vazão, sem os filtros editoriais da imprensa, a um volume de problemas reais maior do que o que era noticiado. Se antes já havia demora nas soluções, essa percepção foi multiplicada pelo crescente número de denúncias feitas nas redes pelos próprios cidadãos. Os problemas que dizem respeito à coletividade se avolumam sem solução a contento, desconsolando e fatigando a vida.
Como a dinâmica da cidade (e da realidade) não responde como deveria, eis o ponto, estamos buscando reparações no ambiente virtual, sensitivamente mais recompensador, além de disponível na palma da mão.
No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades. Estamos habitando no mundo virtual, onde não há frustrações, mas sim gratificação instantânea. Andamos absortos demais em nossa vida. Abduzidos por temas de exclusivo interesse pessoal, retroalimentados minuto a minuto pelo algoritmo.
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Antes vivíamos num mundo de trocas diretas entre as pessoas. Hoje habitamos numa nuvem, no cyber-espaço. Andamos parecendo cada dia mais com Thomas Anderson, protagonista do filme Matrix. Conectado por cabos a um imenso sistema de computadores do futuro, ele vive literalmente em uma realidade paralela. Isso dá
Para complicar tudo, há pensadores para quem a realidade é uma simulação.
Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros etc. não existem no mundo concreto, mas são simulações percebidas pelo nosso corpo (pessoas veem as cores em diferentes tons, quando não em diferentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado dos nossos sentidos.
Assim, a única coisa real seria a razão, quer dizer, o modo como processamos aquelas percepções dos sentidos. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos que amos o concreto, não haveria diferença entre eles.
Segundo aqueles pensadores, como o mundo virtual está entrelaçado com o mundo concreto, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor.
Paulo Kelbert
01/05/20 at 10:34
Que artigo brilhante e lição de vida associada. Morin é um pensador moderno e futurista. Lida de modo otimista com a tragédia com lucidez genial. É para ser lido e relido, cada palavra tem peso de experiência vital e dedicação profunda a causa humana. Rompe com idealizações e retrata a realidade como promissora a despeito dos pessimistas. Os corajosos tem lugar no pensamento de Morin, afinal, sua insistência em sobreviver ao trauma do parto, tornou sua vida um desafio diário. Ele triunfou ao primeiro dia de sua vida. Os decorrentes, já tinha energia para enfrentar.