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Opinião

Decreto de flexibilização: um risco calculado

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Atualizado e corrigido às 09h34 de 23/04 |

Quando a gente não conhece o inimigo, teoricamente as chances de vencê-lo são menores. Se não se pode vê-lo, complica um pouco mais. Para piorar, o novo coronavírus não toma conhecimento de nós, nossos anticorpos que se virem.

O governador Eduardo Leite disse: “Infelizmente, algumas pessoas vão morrer, não tem como impedir o vírus de circular”. É impossível determinar quantos morrerão na cidade, se morrerão. Sabe-se que pode matar gente de todas as idades, saudáveis inclusive, como o médico de 32 anos, em São Paulo.

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Mais cedo comparei o decreto de flexibilização do isolamento, anunciado pela prefeita hoje, com uma bula de remédio. Parece uma bula, pela extensão do detalhe, 68 artigos com muitos parágrafos e incisos. Eu arriscaria que é minucioso porque, assim, o peso da responsabilidade encontra algum alívio. Não é como um governante que autoriza o envio de tropas para uma guerra, mas a sensação, o peso da decisão, talvez seja parecido.

Desde o começo da pandemia, emulando Mandetta e Leite, Paula tem dito que se pautará pela ciência. Mesmo que a origem profissional da professora seja a Academia, nunca acreditei 100% nessa afirmação, por dois motivos. Primeiro, é incomum políticos se renderem à ciência, ao menos não uma outra ciência que não seja a Política, inclusive porque as convicções, arraigadas, equivalem a um molde de gesso. Políticos, pela própria natureza, são prismas por onde filtram-se as luzes de um conjunto de interesses, deles depende o encontro de saídas que distensionem as pressões.

Desde o início me perguntei se o argumento científico, mesmo sendo nobre, resistiria muito tempo. Já não vem resistindo em outras cidades, em algumas, sim. Embora o argumento tenha valor, pode ser que a prefeita esteja certa em não confirmar – na prática – a expressão retórica, afinal, muito ou pouco, o fato é que ela flexibilizou o isolamento social. Pode ter sido um acerto, ainda não se sabe.

A rigor, o que os cientistas descobriram até agora não permite, com segurança, identificar os efeitos do vírus na região. Ainda engatinhamos cientificamente em relação ao covid-19, que desafia a compreensão, e pode reincidir.

Todo mundo sabe que o estrago pode ser grande, devastador como um furacão. Mas ninguém sabe, porque não pode saber, qual o tamanho do estrago por aqui. Há notícias de devastações de grande escala em outros países e cidades, até no Brasil, como em Manaus, onde já enterram coletivamente as pessoas em valas. Mas não se pode prever o que se dará aqui, pode-se estimar.

O estudo do Comitê da UFPel, divulgado na segunda-feira ada, estima que, no pico da pandemia, em fins de junho, Pelotas terá mais doentes do que os 65 leitos de UTI para covid-19 pretendidos pela prefeita e comunicados ao site por ela, no domingo ado, um dia antes da divulgação das projeções dos cientistas.

Pode ser que em Pelotas não ocorram mortes, pode ser que ocorram, o tempo dirá. Tudo é incerto. Por isso, por não haver uma certeza científica segura, mais a pressão pela volta das atividades produtivas, a prefeita decidiu flexibilizar a abertura parcial do comércio não essencial, comércio esse há mais de um mês fechado por ela, uma decisão tomada com base em argumentos científicos, mesmo quando estes eram precoces.

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Sobre o novo decreto, a prefeita diz: “O dispositivo legal (decreto) não tem o intuito de flexibilizar as medidas de contenção adotadas até então. Entendo um pouco de retórica, mas não assimilei a parte negritada. Obviamente, ainda que determinando uma série de regras rigorosas de conduta (a bula), permitir a reabertura de parte do comércio, como a a valer a partir desta quinta-feira (23), é uma flexibilização, um risco.

Os comerciantes e os comerciários, ao menos eles, vão circular mais, daí a prefeita ter tornado ainda mais rigorosas as regras de proteção e distanciamento social, porque, na prática, o decreto estimula mais pessoas na rua, nos pontos de ônibus, dentro dos coletivos etc.

Por ainda estarem em fase inicial e terem margem de erro grande, os estudos da UFPel podem não ter convencido 100% a prefeita de que as previsões do Comitê científico se confirmarão, abrindo, assim, margem para que ela arriscasse uma flexibilização calculada. Com isso, Paula satisfaz os empresários, que, preocupados com a situação econômica e os empregos, faziam pressão legítima pela reabertura das atividades produtivas.

Por outro lado, ao estabelecer no decreto um vasto conjunto severo de regras de comportamento, para evitar o contágio, e estendo-as a atividades que não vinham sendo regradas até aqui, a prefeita satisfaz a banda científica do Comitê de Crise, preocupada com a veloz disseminação do vírus, uma característica do covid-19, ao ponto de o Comitê estimar que, no pico da pandemia na cidade, o número de doentes se sobreporá à capacidade do sistema de saúde de atendimento.

Paula disse que sua decisão de flexibilizar com regras rígidas não foi uma média matemática, mas foi.

Ao observador apressado, tudo pode parecer confuso. Mas a maneira como a prefeita vê o decreto (ou seja, não o vê como uma flexibilização) parece indicar isto: ela pode ter raciocinado que, nos moldes em que flexibilizou, a flexibilização não terá efeito prático real, uma vez que, com as regras de conduta que ela estabeleceu para quem quiser frequentar o comércio etc., as pessoas tendem a não se sentir muito animadas a fazê-lo.

Daí, por hipótese, ela enfatizar que não flexibilizou...

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O leitor se perguntará: Paula empurrou a ciência para fora do trono? Acho que não. Acho que apenas alargou o assento do trono, para caber mais gente, todos os setores do Comitê de Crise, até mesmo o empresário, para que ninguém se sentisse preterido, mas sim ao lado dela, apoiando. De qualquer forma, permanece insegura, tanto que alertou: se durante a próxima semana o comportamento da população escapar ao caráter restritivo do decreto, poderá voltar atrás na decisão de arriscar.

A prefeita não abandonou o engessamento científico, mas se descolou um pouco dele.

O risco é real: Pelotas tem, hoje, apenas 10 leitos de UTI para pacientes de covid-19. Na coletiva desta quinta-feira (22), quatro dias depois de a prefeita dizer que trabalhava para ter 65 leitos, e três dias após serem divulgadas as projeções do Comitê da UFPel mostrando que, no pico da pandemia, o número de doentes será maior do que o número de leitos disponíveis (aqueles 65), ela anunciou, nesta quarta-feira (22), que decidiu alugar mais 25 leitos em hospitais privados, o que daria 90 leitos ao todo, número maior do que os 87 leitos previstos no cenário da UFPel em que ela diz que seu decreto se enquadra, o cenário 3.

A rigor, esta foi a grande novidade do pronunciamento de Paula, hoje: o anúncio do aluguel desses 25 leitos, promessa que só entrou no radar da prefeitura depois que o Comitê da UFPel apresentou os cenários indicando que a cidade teria falta de leitos.

Se não tivesse decidido locá-los, seu decreto de flexibilização se chocaria frontalmente com os três cenários do Comitê de cientistas, que projetaram sempre mais doentes do que leitos.

Com a notícia da locação, a prefeita conseguiu, ao menos no cenário 3, elevar o número de leitos para doentes de covid-19 em três leitos acima do previsto pelos cientistas como necessários no pico da pandemia. 90 leitos contra os 87 previstos no cenário 3.

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É uma diferença pequena, arriscada, mas, politicamente, aceitável.

Como hoje há apenas 10 leitos de UTI para doentes de coronavírus, falta agora à prefeitura materializar o objetivo de conseguir os 80 leitos que promete para totalizar aqueles 90.

© Rubens Spanier Amador, jornalista, editor | Facebook do autor

Jornalista e escritor. Editor do Amigos de Pelotas. Ex Senado, MEC e Correio Braziliense. Foi editor-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Atuou como consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Uma vez ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, é autor dos livros Onde tudo isso vai parar e O fator animal, publicados pela Editora Lumina, de Porto Alegre. Em São Paulo, foi editor free-lancer na Editora Abril.

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Brasil e mundo

Vivendo em mundos paralelos

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Algo mudou na relação entre o jornalismo e os pelotenses. Até por volta de 2015, havia um marcado interesse nos assuntos da cidade. A mera notícia de um buraco, e nem precisava ser o negro, despertava vívida atenção. Agora já ninguém dá a mínima, nem mesmo se o buraco for um rombo fruto de corrupção na área sensível da saúde. O valor da notícia sofreu uma erosão na percepção humana.

Não é uma situação local, mas, arrisco dizer, do mundo. Nós apenas sentimos seus efeitos de forma drástica, por razões de ordem econômica e social. E também dimensionais.

Como a cidade não é grande, os problemas são ainda mais visíveis. Topamos com eles no cotidiano. Acontece que os buracos reais e metafóricos, ainda que denunciados, inclusive pelo cidadão que vai às redes sociais reclamar, avolumam-se sem solução que satisfaça, levando a outro problema, este de ordem comportamental.

Vem ocorrendo uma cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem. Um corte entre elas e a vida social. O espaço, que no ado era público, já hoje parece ser de ninguém.

A responsabilidade parcial disso parece, curiosamente, ser das novas tecnologias de comunicação. Se por um lado elas deram voz à sociedade como um todo, por outro, ao igualmente darem amplo o ao mundo virtual, elas nos têm distraído da concretude do mundo, de interação sempre mais hostil — distraído, enfim, da realidade mesma, propiciando que vivamos em mundos paralelos.

Outra razão é que, ao menos no essencial, nada muda em nossa realidade. Os problemas que dizem respeito à coletividade se repetem sem solução, fatigando a vida, pulverizando a mobilização.

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Como a dinâmica da cidade (e da realidade) não responde como deveria, eis o ponto, estamos buscando reparações no ambiente virtual, sensitivamente mais recompensador, além de disponível na palma da mão.

No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades. Estamos habitando no mundo virtual, onde não há frustrações, mas sim gratificação instantânea. Andamos absortos demais em nossa vida. Abduzidos por temas de exclusivo interesse pessoal, retroalimentados minuto a minuto pelo algoritmo.

Antes vivíamos num mundo de trocas diretas entre as pessoas. Hoje habitamos numa nuvem, no cyber-espaço. Andamos parecendo cada dia mais com Thomas Anderson, protagonista do filme Matrix. Conectado por cabos a um imenso sistema de computadores do futuro, ele vive literalmente em uma realidade paralela. Isso dá

Para complicar tudo, há pensadores para quem a realidade é uma simulação.

Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros etc. não existem no mundo concreto, mas são simulações percebidas pelo nosso corpo (pessoas veem as cores em diferentes tons, quando não em diferentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado dos nossos sentidos.

Assim, a única coisa real seria a razão, quer dizer, o modo como processamos aquelas percepções dos sentidos. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos que amos o concreto, não haveria diferença entre eles.

Segundo aqueles pensadores, como o mundo virtual está entrelaçado com o mundo concreto, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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