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Brasil e mundo

“Voltei a vestir meu chapéu de epidemiologista”. Por Pedro Hallal

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Há três anos, assumi o cargo de reitor da Universidade Federal de Pelotas [UFPel] e apertei a tecla pause na minha vida científica. Interrompi o vínculo com todos os projetos de pesquisa em que trabalhava para me dedicar 100% ao comando da universidade. Até que surgiu a pandemia do novo coronavírus. Eu estava vestindo o chapéu de reitor, mas não dava para fazer de conta que não tinha um outro chapéu guardado, o de epidemiologista.

Fiz mestrado e doutorado com bolsas pagas pela sociedade. O governo fez um investimento na minha formação para que eu estivesse pronto para ajudar em um momento de pandemia. O programa de Pós-graduação em Epidemiologia da UFPel é um dos mais conceituados do país e seus pesquisadores têm uma evidente contribuição a dar nesse momento.

Estou coordenando o primeiro estudo feito no Brasil sobre a prevalência da Covid-19 em uma população, a do Rio Grande do Sul, que agora será ampliado para todas as regiões do Brasil. O objetivo é entrevistar e coletar sangue de indivíduos em cidades selecionadas em quatro momentos diferentes, com intervalo de duas semanas entre as coletas. Com isso, conseguiremos saber o percentual de pessoas que têm anticorpos contra o Sars-CoV-2, ou seja, que já entraram em contato com a doença, e os sintomas que sofreram.

Cada coleta mostrará o retrato de um momento, e a comparação das quatro revelará a velocidade com que o vírus está se disseminando. Se cada coleta é uma foto, o conjunto das quatro vai mostrar um filme. Adotamos a imagem de um iceberg como logotipo do projeto, uma vez que as estatísticas oficiais mostram apenas a ponta mais evidente do problema.

No estudo do Rio Grande do Sul, os resultados da primeira coleta foram divulgados no dia 15. Foram realizados testes em 4.189 indivíduos em nove cidades do estado, e dois testaram positivo para anticorpos da doença – o que indica uma prevalência de 0,05% na população. Extrapolada para os 11,3 milhões de gaúchos, essa proporção sugere que haveria hoje 5.650 pessoas infectadas no Rio Grande do Sul, e não as 747 oficialmente registradas.

As cidades não foram escolhidas ao acaso, são os principais municípios de cada uma das nove regiões do estado. Depois de um intervalo de duas semanas, haverá outra coleta com mais 4,4 mil pessoas, que se repetirá outras duas vezes. É uma iniciativa tripartite. Um dos polos é a academia – são 10 universidades gaúchas envolvidas sob a liderança da UFPel. Outro é o poder público.

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O governo do estado coordena o estudo e o Ministério da Saúde forneceu os testes. E também há a sociedade civil. O financiamento foi obtido com instituições privadas, como a Unimed e o Instituto Cultural Floresta, do Rio Grande do Sul, e o Instituto Serrapilheira, no Rio de Janeiro.

O Ministério da Saúde solicitou que a gente expandisse a pesquisa para o país inteiro. Em duas semanas, nós preparamos o protocolo da pesquisa e remetemos para o Ministério da Saúde, que fez o ree de recursos para a UFPel. Fizemos uma chamada para contratar a empresa que vai fazer as entrevistas e coletar amostras de sangue dos entrevistados e a selecionada foi o Ibope [Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística]. O trabalho será feito em 133 cidades em todas as regiões e cada etapa vai coletar dados e amostras de mais de 33 mil pessoas.

Esses estudos não têm precedentes no mundo em volume da população estudada. Houve um estudo populacional feito na Áustria, que entrevistou 1,5 mil pessoas e constatou que 0,33% da população tinha sido infectada. Teve também um estudo em uma cidade alemã que foi o epicentro da epidemia no país – o contágio foi multiplicado depois de uma grande festa popular – e lá deu uma prevalência de 14%. Foram realizados cerca de 4 mil testes.

Tenho trabalhado em um ritmo que não é compatível com a saúde mental e física de uma pessoa e espero que isso não dure muito tempo. São 16 horas por dia, todos os dias, mas é compensador ver os resultados. As pesquisas da UFPel estão hoje entre as mais citadas por pesquisadores, autoridades e imprensa. A universidade atua em várias frentes contra a Covid-19.

Desde o começo da pandemia, amos a produzir em parceria com a Universidade Católica de Pelotas uma quantidade enorme de álcool em gel para uso do Sistema Único de Saúde. Também temos equipes produzindo grandes volumes de máscaras em impressoras 3D, tanto as mais simples como as mais sofisticadas.

Um grupo da engenharia desenvolveu uma pia portátil, com acionamento automático e sem necessidade de contato manual, que será instalada em lugares públicos. Também temos gente trabalhando com a recuperação de ventiladores pulmonares e tentando fabricá-los usando um protótipo desenvolvido pela USP [Universidade de São Paulo]. Recebemos recursos do Ministério da Educação para começar a realizar testes de PCR e auxiliar no diagnóstico do coronavírus. Isso, sem falar que o hospital-escola da UFPel é referência em Covid-19 em Pelotas.

As nossas aulas estão suspensas desde 13 de março e temos um grupo de trabalho que está elaborando uma proposta de calendário acadêmico para compensar o tempo perdido. Trabalhamos com três cenários, de retorno às atividades em junho, julho ou agosto. Não parei de usar o chapéu de reitor.

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Pedro Hallal é professor dos programas de Pós-graduação de Educação Física e Epidemiologia da UFPel. Desde 2017, é reitor da Universidade.

Texto publicado originalmente na revista Pesquisa Fapesp

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Brasil e mundo

A liberdade sagrada das redes

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Noutro dia escrevi um texto sobre a cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem, responsabilizando parcialmente as novas tecnologias de comunicação. Disse: “Se por um lado as tecnologias deram voz à sociedade, por outro, nos têm distraído da concretude do mundo, de interação mais hostil, levando-nos a viver em mundos paralelos”. E: “No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades, mas sim no mundo virtual, um refúgio, retroalimentado pelo algoritmo, onde não há frustrações, mas sim gratificações instantâneas”. Bem, esse é um lado da questão. E não é novo.

Desde Freud se sabe que, diante do trauma, a criança dissocia-se para á-lo, refugiando-se na neurose, uma estratégia de defesa contra o trauma. Pois, assim como a criança traumatizada, as pessoas, diante das escalabrosidades do mundo concreto, fazem igual: elas se refugiam no mundo virtual, guardando, do mundo concreto, uma distância.

O outro lado da questão, o reverso da moeda, é que, sem as novas tecnologias de comunicação, a voz traumatizada da sociedade permaneceria atravessada na garganta, sem chance de extravasar-se.

A possibilidade de expressão liberou uma carga de justos ressentimentos contra os limites da política, as injustiças, o teatro social. De súbito, tivemos uma ideia do tamanho da insatisfação com os sistemas de vida, ando publicamente a protestar, em alguns casos chegando à revolução, como ocorreu na Primavera Árabe, onde as redes sociais cumpriram um papel fundamental.

Pois não é por outra razão que os donos do antigo mundo estão incomodados e querem controlar a liberdade de expressão, especialmente a velha imprensa, os monopólios empresariais, os sistemas políticos totalitários. Enfim, todos aqueles para quem a internet e as redes sociais ameaçam seu poder, ao por de pernas pro ar as certezas convenientes sobre as quais se assentaram.

Fato. As inovações desarranjam os mercados e os modos de vida. Toda inovação faz isso. É o preço do progresso. Mas, assim como é impossível voltar ao tempo do telégrafo (imagine o desespero nas Bolsas de Valores), é impensável retroagir ao mundo exclusivo da prensa de Gutenberg. Porque as descobertas, afinal, permitem avançar nos arranjos produtivos: propiciam economia de tempo, dinheiro e, no caso da comunicação, ampliam a liberdade, seu bem mais precioso.

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Com todos os defeitos que a vida tem, é preferível mil vezes, ao controle da palavra, a liberdade de dizê-la. Quem pode afirmar (ou julgar) o que é verdadeiro e o que é falso, senão as pessoas mesmas, em última análise, de acordo com suas percepções e as pedras em seus sapatos? Pois hoje, depois de provarmos a liberdade trazida pelas novas tecnologias, mais do que nunca sabemos que a imprensa, em sua mediação da realidade, é falha, e como o é!

É interessante (e triste) ver como, após a criação da internet e das redes, grande parte da imprensa, ao perder o monopólio da verdade, se vêm tornando excessivamente opinativa e crítica das novas tecnologias. Deveria, sim, era aprimorar-se no trabalho para prestá-lo melhor. Acontece que, eis o ponto, como a velha imprensa não é livre de fato, como depende do financiador, muitas vezes de governos, ela vê nas novas tecnologias de ampla liberdade uma ameaça à velha cadeia de produção acostumada a filtrar o que valia ser dito, e o que não valia, em seu óbvio interesse, hoje nu, como o rei da história.

Além disso, há essa coisa interessante: a percepção. Para alguns pensadores do novo mundo, o que chamamos de realidade é uma simulação, no que concordo. Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros, paladares etc. não existem no mundo concreto (são imateriais), sendo portanto simulações percebidas pelos sentidos (pessoas veem cores em diferentes matizes, quando não divergentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado exclusivo dos nossos sentidos. Assim, a única coisa real seria a razão. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. “Penso, logo existo”.

Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos com que amos o mundo concreto, estando entrelaçados, não haveria diferença entre eles. Logo, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor. Eu acredito que é assim.

Uma vez provadas as inovações, não é possível retroagir. Podemos, isso sim, é refinar, em decorrência delas, o nosso comportamento.

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Vivendo em mundos paralelos

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Algo mudou na relação entre o jornalismo e os pelotenses. Até por volta de 2015, havia um marcado interesse nos assuntos da cidade. Um mero buraco, e nem precisava ser o negro, despertava vívida atenção. Agora já ninguém dá a mínima. Nem mesmo se o buraco for um rombo fruto de corrupção numa área de vida e morte, como a de saúde. O valor da notícia sofreu uma erosão nas percepções.

Não é uma situação local, mas, arrisco dizer, do mundo. Nós apenas sentimos seus efeitos de forma drástica, por razões de ordem econômica e social. E também dimensionais.

Como a cidade não é grande, os problemas são ainda mais visíveis. Topamos com eles no cotidiano. Acontece que os buracos reais e metafóricos, ainda que denunciados, inclusive pelo cidadão que vai às redes sociais reclamar, avolumam-se sem solução que satisfaça, levando a outro problema, este de ordem comportamental.

Vem ocorrendo uma cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem. Um corte entre elas e a vida social. O espaço, que no ado era público, já hoje parece ser de ninguém.

A responsabilidade parcial disso parece, curiosamente, ser das novas tecnologias de comunicação. Se por um lado elas deram voz à sociedade como um todo, por outro, ao igualmente darem amplo o ao mundo virtual, elas nos têm distraído da concretude do mundo, de interação sempre mais hostil — distraído, enfim, da realidade mesma, propiciando que vivamos em mundos paralelos.

Outra razão é que, no essencial, nada muda em nossa realidade. Isso ficou mais evidente porque as redes sociais deram vazão, sem os filtros editoriais da imprensa, a um volume de problemas reais maior do que o que era noticiado. Se antes já havia demora nas soluções, essa percepção foi multiplicada pelo crescente número de denúncias feitas nas redes pelos próprios cidadãos. Os problemas que dizem respeito à coletividade se avolumam sem solução a contento, desconsolando e fatigando a vida.

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Como a dinâmica da cidade (e da realidade) não responde como deveria, eis o ponto, estamos buscando reparações no ambiente virtual, sensitivamente mais recompensador, além de disponível na palma da mão.

No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades. Estamos habitando no mundo virtual, onde não há frustrações, mas sim gratificação instantânea. Andamos absortos demais em nossa vida. Abduzidos por temas de exclusivo interesse pessoal, retroalimentados minuto a minuto pelo algoritmo.

Antes vivíamos num mundo de trocas diretas entre as pessoas. Hoje habitamos numa nuvem, no cyber-espaço. Andamos parecendo cada dia mais com Thomas Anderson, protagonista do filme Matrix. Conectado por cabos a um imenso sistema de computadores do futuro, ele vive literalmente em uma realidade paralela. Isso dá

Para complicar tudo, há pensadores para quem a realidade é uma simulação.

Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros etc. não existem no mundo concreto, mas são simulações percebidas pelo nosso corpo (pessoas veem as cores em diferentes tons, quando não em diferentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado dos nossos sentidos.

Assim, a única coisa real seria a razão, quer dizer, o modo como processamos aquelas percepções dos sentidos. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos que amos o concreto, não haveria diferença entre eles.

Segundo aqueles pensadores, como o mundo virtual está entrelaçado com o mundo concreto, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor.

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