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O coronavírus será uma pandemia ageira. O que não ará é o medo da morte, que nos acompanha como uma sombra
Mário Vargas Llosa, escritor (trecho de artigo publicado originalmente em 18 de março)
A peste foi ao longo da história um dos piores pesadelos da humanidade. Sobretudo na Idade Média. Era o que desesperava e enlouquecia os nossos velhos ancestrais. Encerrados por trás das robustas muralhas que tinham erigido para suas cidades, defendidos por fossos cheios de águas envenenadas e pontes levadiças, não temiam tanto esses inimigos tangíveis contra os quais podiam se defender de igual para igual, enfrentá-los com espadas, facas e lanças. Mas a peste não era humana, era obra dos demônios, um castigo de Deus que recaía sobre a massa cidadã e golpeava por igual pecadores e inocentes, contra a qual não havia nada a fazer, salvo rezar e se arrepender dos pecados cometidos. A morte estava ali, todo-poderosa, e depois dela as chamas eternas do inferno. A irracionalidade eclodia em qualquer parte, e havia cidades que tratavam de aplacar a praga infernal oferecendo-lhe sacrifícios humanos, de bruxas, bruxos, incrédulos, pecadores não arrependidos, insubmissos e rebeldes. Quando Flaubert viajou ao Egito, ainda viu leprosos que percorriam as ruas tocando sinos para advertir às pessoas para que se afastassem se não quisessem ver (e se contagiar com) suas chagas purulentas.
Por isso, a peste quase não aparece nas novelas de cavalarias, que são outro aspecto, mais positivo, da Idade Média: nelas há proezas físicas extraordinárias, Tirante, o Branco, derrota sozinho gigantescos exércitos. Mas os adversários dos cavalheiros andantes são seres humanos, não diabos, e o que o homem medieval teme são os diabos, esses demônios que, escondidos no coração das epidemias, golpeiam e matam sem discriminar culpados e inocentes.
Esse velho terror não desapareceu de todo, apesar dos extraordinários progressos da civilização. Todo mundo sabe que, como ocorreu com a AIDS e com o ebola, o coronavírus será uma pandemia ageira, para a qual os cientistas dos países mais avançados logo encontrarão uma vacina para nos defender contra ela, e que tudo isto terminará e será, dentro de algum tempo, uma notícia murcha da qual as pessoas mal se recordarão.
O que não ará é o medo da morte, do além, que é o que se aninha no coração destes terrores coletivos que são o temor em relação às pestes. A religião aplaca esse medo, mas nunca o extingue, sempre fica, no fundo dos crentes, esse mal-estar que aumenta às vezes e se transforma em medo pânico, do que haverá uma vez que se cruze aquele limiar que separa a vida do que há além dela: a extinção total e para sempre? Essa fabulosa divisão entre o céu para os bons e o inferno para os malvados de um deus brincalhão, que as religiões prognosticam? Alguma outra forma de sobrevivência que não foram capazes de notar os sábios, os filósofos, os teólogos, os cientistas? A peste de repente traz estas perguntas, que na vida cotidiana normal estão confinadas nas profundezas da personalidade humana, para o momento presente, e homens e mulheres devem responder a elas, assumindo sua condição de seres ageiros.
Para todos nós é difícil aceitar que tudo de belo que tem a vida, a aventura permanente que ela é ou poderia ser, é obra exclusiva da morte, de saber que em algum momento esta vida terá ponto final. Que se a morte não existisse a vida seria imensamente chata, sem aventura nem mistério, uma repetição cacofônica de experiências até a saciedade mais truculenta e estúpida. Que é graças à morte que existem o amor, o desejo, a fantasia, as artes, a ciência, os livros, a cultura, ou seja, todas aquelas coisas que tornam a vida ável, imprevisível e excitante. A razão nos explica isso, mas a injustiça que também nos habita nos impede de aceitá-lo. O terror à peste é, simplesmente, o medo da morte que nos acompanhará sempre como uma sombra.