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Cultura e entretenimento

O gigante do out door. Nós somos a cidade!

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Eduardo levava uma vida tranquila em Pelotas.

Quando ou para a faculdade de Enfermagem, ganhou apartamento e um carro de seus pais (Renault Kwid, um “carro”), de pronto, pôs no veículo adesivos clássicos da cidade, como o do Grelhados Batuva e do Esporte Clube Pelotas, time pelo qual era fanático desde a tenra idade. Falar mal do Pelotas era um xingamento íntimo para Edu, que incontáveis vezes saiu esbaforido do Café Aquários por defender a soberania suprema de Sandro Sotilli.

Quem foi melhor, Sotilli ou Cláudio Millar?

— Sotigol, oras! — Protestava, sorvendo seu expresso de todas as manhãs.

Durante a semana, Eduardo ia até o Parque Tênis, onde treinava slices e backhands, todas terças e quintas. Já nos findes, dirigia até a Praia do Laranjal para buscar Julia, uma morena esfuziante com a qual completara dois anos de um namoro tão sólido quanto um paralelepípedo. Juntos, flanavam em cima do Kwid marrom-cocô em busca do cambiante agito noturno da cidade, mas não antes de ar pela clássica Avenida Bento Gonçalves, uma espécie de canal do Panamá pelotense por se tratar de uma rua sem a qual não é possível chegar ao centro da cidade, onde a vida acontece.

Eduardo vivia tempos de ouro com Julia, inclusive, nem lembrava mais o que era brigar. Ele arrumara amigos na recém desbravada faculdade de Enfermagem, os professores o adoravam e até a pacata cidade de Pelotas, que antes parecia frígida aos seus olhos, hoje era colorida e entusiasmante.

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Tudo corria perfeitamente bem… até que o cursinho Fleming resolveu anunciar no outdoor da avenida Bento Gonçalves.

Quem vive em Pelotas pode até não conhecer o Centro de Eventos Fenadoce, o histórico Teatro Sete de Abril ou as sanguinárias charqueadas da cidade; mas nenhum, nem sequer um vivente que se intitule pelotense, deixou de fitar ao menos alguns segundos para o majestoso outdoor da Bento Gonçalves, esquina com a Félix.

Eram muitas as características que o consagravam como o outdoor mais valioso da cidade: uma estrutura de proporções colossais, munida de sinaleiras envergonhadas — que se avermelhavam por qualquer motivo — , encontrava-se em cima do portão de o da Boca do Lobo (estádio do Áureo-Cerúleo, Esporte Clube Pelotas) e tivera seu valor muito agregado à qualidade de seus anunciantes, que eram marcas clássicas do município, como Colégio São José, Feijão Tordilho e Biscoitos Zezé.

Chegado o período dos listões, a equipe de marketing do cursinho Fleming julgou ótima a ideia de concentrar todo o seu investimento do ano para pleitear um espaço no famoso outdoor, movida pelo sucesso eminente de seus alunos. Foi assim que o novo e salivante biscoito marinado da Zezé desapareceu do mapa, abrindo espaço à imagem de um felizardo estudante que ou em simplesmente todas as universidades de Medicina disponíveis no Rio Grande do Sul, em primeiríssimo lugar. O seu nome era Bibiano, e Eduardo o conhecia até por demais.

A primeira vez que parou com seu Renault na vermelhidão da sinaleira, ficou perplexo, travou, nem ao menos conseguiu engatar a primeira quando o sinal abriu, sofrendo fortes buzinadas e ameaças à sua mãe, sem reciprocidade. A imagem de Bibiano era uma espécie de gigante que saudava Pelotas. Queixo elevado, braços cruzados, olhar confiante. Lá estava ele, magnânimo, brutalmente inteligente e indiscutivelmente bem-apessoado (para não dizer bonito, ou adjetivo mais comprometedor).

Eduardo estava em frangalhos. Bibiano era um fantasma que assombrava o seu relacionamento com Julia. Era o ex. Um ex mais atual do que gostaria — os dois ainda se falavam. Eduardo podia jurar que com ele, ela ria mais, se sentia mais confortável e era até mais feliz. Ela negava, mas o que mais poderia dizer?

Lentamente, Eduardo foi perdendo o gosto pelo tênis. Começou indo só nas terças, depois, nem nas terças comparecia. Não queria ar pelo outdoor. A sinaleira também não dava uma trégua, bastava enxergar Eduardo que fechava na hora, maldosa. Ele estava ficando doente, aquilo se tornava um trauma.

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Como é impressionante o poder de uma imagem!

Quando o fim de semana chegou, inventou umas desculpas para não sair com Julia. Primeiro falou ao telefone sobre dores de cabeça, depois, trabalhos da faculdade, se enrolou todo, mas no fim das contas conseguiu uma semana de folga.

Eduardo não queria ver fim em sua história com Julia, não à toa, andava dizendo por aí que era a mulher da sua vida. Apesar dos ciúmes (e ela adorava provocar), tinha insanas saudades da namorada, futura mulher, mãe dos seus filhos, por que não? Ele precisava enfrentar esse medo, precisava voltar a encarar a fronte de Bibiano, dessa vez seria diferente.

Então, sem hesitar, pegou as chaves do carro e acelerou com determinação digna dos espartanos. Pisou fundo, foi seco em direção ao gigante cartaz do cursinho pré-vestibular.

Chegando lá, estava rendido. Foi incapaz de olhar, curvou seu tronco como um camundongo e fez a curva às cegas. Dessa forma descobriu uma solução não tão elegante: bastava fechar os olhos.

Viveu alguns dias com a ilusão de normalidade. Quando chegava próximo ao outdoor, abaixava o olhar como uma mula e fazia a tão repetida curva com confiança, baseando-se unicamente em sua invejável memória muscular. Já estava de volta ao tênis, os colegas da Enfermagem não reclamavam mais da ausência do amigo e, mesmo faltando algumas peças, o quebra-cabeça de sua vida enfim parecia voltar a se encaixar.

***

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Isso durou somente até aquela fatídica sexta-feira.

Eduardo suava frio dentro do carro. A delirante Julia, sentada ao lado, tagarelava feliz, depois de uma semana sem ver seu namorado. Edu soltava sorrisos esparsos, quase como uma estratégia social, pois todos os seus esforços mentais concentravam-se no maldito outdoor que estava por vir. Ele, que era ateu, chegava a rezar para que a sinaleira permanecesse aberta.

Verde tornou-se sua cor favorita por instantes. Verde, ele via a sinaleira a poucos metros de distância, ela estava verde. Verde, seu amor era verde. Verde, verde, verde, amarelo e, abruptamente, vermelho.

Freou em um sobressalto, parando em cima da faixa de pedestres. Eduardo foi impedido pelo valor simbólico de uma tonalidade. Eduardo estava derrotado, e a derrota tem cor: é vermelha.

Lá estava o casal, cara-a-cara com a imagem de Bibiano. O gigante ria da situação e nem se mexia, tamanho prazer masoquista. Olhava fundo nos olhos de quem fosse, tal qual Monalisa, só que mais triunfante.

Eduardo disfarçava, fitava as próprias unhas, tentou até puxar um assunto para desviar a atenção da amada. Tudo em vão.

— Meu deusss, olha só o Bi! — Berrava Julia, em êxtase.

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Eduardo fingiu não ouvir. O sangue do seu corpo já havia subido às orelhas, a respiração estava ofegante, o coração descomado. Ele tremia a mão de forma compulsiva.

— Meuuu, não acredito, sériooo. Esse guri é um gênio, puta que pariuuu — Insistia a malvada, enquanto sacava seu celular da bolsa para tirar uma selfie com a imagem do ex.

— …É — Respondeu Edu, atônito, com o resto de ar que ainda circulava em seus pulmões.

Aquele sinal que antes demorava quarenta segundos, agora perdurava por quarenta vidas. Eduardo viu o filme da sua, várias e várias vezes. O tempo simplesmente não ava.

Em seu último lapso de sanidade, deu uma esticada de pescoço — como fazem os pervertidos nos banheiros públicos — e pôde ler a mensagem estampada no celular, como um decreto que marcava o encerramento de seu próspero romance.

“Boa noite doutor, vamos comemorar amanhã? O vinho é por minha conta rsrs”.

Não tem jeito. O enfermeiro cuida, nutre e dá afeto, mas quando a coisa aperta, é para o médico que elas ligam.

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No instante em que o sinal abriu, Eduardo já estava fora de si. Com os olhos fechados e todos os músculos enrijecidos, amassou o acelerador a patadas, lançando o carro desgovernado em direção ao portão de o do Esporte Clube Pelotas.

Do portão não restou nada. O carro só foi parar no meio do campo, todo estraçalhado, deixando um rastro de destruição no precário gramado, que se encontrava adornado com placas de publicidade, cadeiras inferiores e pedaços de entulho.

No outro dia, a matéria de capa do Diário Popular mostrava o Kwid demolido no fundo da imagem, duas paralelas de destruição causadas pelos pneus alucinados, o portão de ferro desmanchado por completo e, em cima de tudo isso, Bi, o gigante do Outdoor, pleno e sorridente pois ou em Medicina. Em primeiro lugar.

Eduardo terminou por telefone, sem mais nem menos. Juntou suas malas e mudou para Porto Alegre, para se tratar e fugir da má fama que viraria o segundo fantasma de sua vida.

***

Edu se formou na nova cidade e ou por um processo de reconstrução pessoal que renderia um livro, dos grandes.

Mas, o importante para nossa história é que, anos depois, Porto já não era mais tão Alegre e, motivado pela falta de emprego, resolveu voltar a sua cidade de origem, que tampouco era a mesma.

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Ao chegar, pôde perceber uma Pelotas que vivia história em seu futebol, advento esse que influenciava quase todos os aspectos do território e da sociedade pelotense.

O Grêmio Esportivo Brasil ressurgira das cinzas, tornando-se a terceira potência do futebol gaúcho. A ascensão de joias da base aliada a uma campanha extraordinária galgou o Rubro-Negro até a primeira divisão do Brasileirão, batendo de frente com os maiores times do país sem se acovardar. O Brasil nunca foi tão rico, e toda semana a cidade entrava em frenesi ao acompanhar verdadeiras guerras travadas no interior do Estádio Bento Freitas.

Por outro lado, para o desespero de Eduardo, o Esporte Clube Pelotas habitava um inferno econômico, quase fechando suas portas por causa de um longo esquema de corrupção fiscal e cheques sem fundo. Os jogadores, frustrados pelos meses sem receber, entraram em greve, levando consigo os patrocinadores que ainda restavam. O clube já penhorava o sistema de som do estádio e até alguns refletores, tentando uma sobrevida, um último suspiro. É nesse cenário catastrófico que o Pelotas recebe uma proposta indecente, capaz de pôr o clube de volta nos trilhos, uma ressurreição quase milagrosa ao custo de um ano de direitos de divulgação sobre o famoso outdoor que prendia a atenção de um município inteiro. O problema: esse anunciante seria seu time rival, o Brasil.

É desnecessário relatar que a torcida foi absolutamente contra essa humilhação. Diversas reuniões entre os dirigentes vararam noites, mas no fim de tudo, o clube acabou aceitando a proposição salvadora.

***

Justiça seja feita: Julia foi essencial para a recuperação de Eduardo. Ele, um Guzerá humano, vacilava nas madrugadas porto-alegrenses e acabava ligando para a ex, em busca de amparo emocional. Ela, com calma comparável a de uma pedagoga infantil, atendia e tranquilizava o antigo companheiro. Eles haviam se tornado bons amigos.

Como é boa a amizade de ex!

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Pouco se falava sobre o episódio do outdoor, ao o que muitas das conversas tomavam tons saudosistas — ambos adoravam lembrar dos bons momentos, do nascer do sol no Trapiche, das cervejas pré-jogo na Boca do Lobo, das viagens que faziam pelas praias do Sul.

Eduardo podia até não falar, mas sentia saudades.

— A Julia sempre foi assim, — Pensava. — dotada de uma sinceridade inconveniente. Ela não faz por mal, é só o jeito dela.

Dessa maneira foi dizendo a si, enquanto prendia-se lentamente à teia da antiga paixão. Julia, uma viúva-negra faminta, prestes a devorar sua alma. Mas era tão linda…

Combinaram de se encontrar logo no primeiro dia que Eduardo pôs os pés na Terra do Doce. Ele pegaria emprestado o carro do pai e juntos iriam à Choperia Cruz de Malta, para beber umas cervejas e reclamar da vida, disseram.

Eduardo estava nervoso. Em sua mente pairavam imagens desfocadas de uma Julia do ado, deixando as informações faltantes à mercê da liberdade poética de seu inconsciente vislumbrado. Era uma pintura que se tornava real em um cerrar de olhos. Um paraíso onírico; era lá onde queria estar.

Assim que ligou a ignição e deu partida na máquina, Edu percebeu algo diferente na aparência da cidade: todos os outdoors da estrada estavam pintados de vermelho, com do Brasil de Pelotas e estrelados por um de seus atacantes que se tornou destaque nacional.

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Seu nome era Vilson Cabeça, o homem que possuía um pé no lugar da testa.

Ele até podia não ser um grande jogador defensivo e certamente era um alheio ao universo dos dribles, mas quando se tratava do jogo aéreo, um nome sempre vinha à tona nas mesas de bar: Vilson Cabeça.

Cada escanteio era um deus-nos-acuda, ele subia quatro andares de altura e desferia verdadeiros foguetes com sua moleira. Já se especulava a possibilidade das bolas possuírem ferro em sua composição, tamanho magnetismo que seu crânio exercia sobre essas.

Vilson, além de herói da ascensão meteórica do Xavante, também se tornou protagonista dessa campanha publicitária que entrava para a história da propaganda pelotense. A campanha chamava-se Papo Cabeça e era basicamente constituída pela imagem do atacante que dava uma “cabeçada” em frases que ironizavam a situação financeira do time rival.

Uma das aplicações mais famosas da campanha se encontrava acima do clássico Café Aquários, com o escrito “Vilson Cabeça adverte: Este estabelecimento não aceita cheques”. Outra peça que gerou um reboliço na cidade situava-se ao lado do Banco do Brasil, dizendo “Aprendam com quem pedala e nunca quebra”.

Eduardo ia pela faixa da direita, vagarosamente, acompanhando cada título. Eles eram perspicazes, criativos e arrebatadores; sentiu-se um saco de pancadas, uma piñata em festa de criança. Seu interior borbulhava, mas, resiliente, lia frase por frase, sem pedir arrego.

Como é impressionante o poder das palavras!

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Seu torpor apenas cessou quando viu Julia saindo pelo portão de casa. Ela vestia uma saia que sufocava o par de volumosas coxas e um cropped que revelava o umbigo e permitira o respiro dos seios que mais lembravam duas bolas de futsal. Julia estava como nunca esteve, superando até os sonhos mais fantásticos de Edu.

No momento que sentou no carro, prontamente incendiou um sentimento que hibernava em Eduardo: a chama da paixão; uma labareda que ardia em seu coração, um incêndio, uma Amazônia. Eduardo avançou com seus lábios, mirando os lábios da pretendida, que lhe ofereceu a bochecha e um aperto de mãos como consolo. Apesar da finta, Eduardo, turvo de paixão, só podia pensar: que mão bem macia!

Foram conversando de forma comedida e impessoal, Eduardo “analisando o campo” enquanto dirigia, Julia analisando seu iPhone, enquanto contava da última série que assistiu na Netflix. O tom da conversa apenas mudou quando os dois, como na cena de um filme, se viram parados na Bento esquina com a Félix, de frente para o famoso outdoor que marcara suas vidas, paralisados pelo vermelho da sinaleira, que matinha sua cisma com nosso protagonista mesmo depois de anos sem contato visual.

Diante deles, colada à Boca do Lobo, estava a obra prima da campanha “Papo Cabeça”, o Magnum Opus de um redator publicitário que só não assinou a peça porque temia por sua própria vida.

Vilson Cabeça, capturado na maior altura que um ser humano é capaz de saltar, envergava seu corpo como um parêntese aberto para desferir a cabeçada mais potente de sua carreira: “Vilson Cabeça sugere: para não sofrerem mais gols, penhorem também as goleiras.”.

Mesmo ardendo por dentro, Eduardo ainda foi capaz de rir da frase.

— Essa talvez seja a maior humilhação de toda a minha vida, mas eu ainda prefiro ver o Vilson Cabeça do que a imagem de um namorado teu — Desabafou.

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Quando essas palavras foram desferidas, Julia avermelhou-se tal qual a malvada sinaleira. Desferiu uma risadinha involuntária, mexeu no cabelo, fez tudo que um livrinho de linguagem corporal diria para não fazer.

— Eu nunca te falei sobre o Vi? — Disse, com voz trêmula.

Eduardo por momentos se transportou ao ado, sentou-se no Kwid e reviveu o declínio de sua vida. Atropelou o portão novamente, deu voltas e mais voltas no campo; por um momento pôde até voar com seu Renault, igualzinho às propagandas que via na TV. O causador dessa ruína? Bibiano, Bi para os mais íntimos.

Mas Vi? Quem poderia ser Vi?

Os neurônios de Eduardo funcionavam como nunca antes, ele era hospedeiro de uma epifania sobre-humana; vasculhava tudo que um dia fora armazenado em seu cérebro, mas nenhum Vi lhe ocorria.

Isso até olhar para a mão de Julia, a mais macia de Pelotas. Enrolado em seu dedo anelar esquerdo estava um anel dourado, com as letras gravadas “JU + VI”.

Vi?

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Olhou para frente, o majestoso outdoor, imponente, o motor das maiores desgraças de sua vida. Nele havia um homem.

Vi? Sim, Vi.

Vilson.

Vilson Cabeça.

Quando o sinal abriu, Eduardo realizou a curva baseando-se unicamente em sua invejável memória muscular, isso enquanto encarava ininterruptamente o centro avante Vilson, seu mais novo arqui-inimigo.

Assim fez com todos os Vilson’s que apareceram no trajeto, com olhar desafiante, sem ao menos piscar. Dirigia lentamente, blasfemando a imagem do jogador em um sinal de profunda valentia e insurreição pessoal.

Dessa forma, rumou com Julia à Choperia Cruz de Malta, em uma tentativa desesperada de levar para a prorrogação um jogo que já se iniciava perdido.

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© João Albandes, estudante de Publicidade e Propaganda na UFRGS, Redator na agência Abajur Propaganda.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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