O professor da UFPel Bruno Pereira Nunes concedeu entrevista ao site da Associação de Docentes da UFPel (Adufpel), sobre o Sistema Único de Saúde e a pandemia de COVID-19.
Bruno é professor da Faculdade de Enfermagem, Mestre e Doutor em Epidemiologia, e Membro do Comitê Interno para Acompanhamento da Evolução da Pandemia pelo Coronavírus da UFPel.
A entrevista está disponível no site da ADUFPel.
Bruno
Qual a importância de um sistema de saúde público e universal, como o SUS, no momento de enfrentar uma pandemia como a do Coronavírus? Você acha seria diferente a reação ao Coronavírus no Brasil caso não houvesse o SUS e só sistemas privados de saúde?
Os sistemas públicos universais são importantes em qualquer contexto, ainda mais em situações de pandemia como a do Coronavírus. Acho que, depois que o COVID ar, e isso deve acontecer em breve, talvez nós possamos refletir só a importância desses sistemas. Mais do que universalidade, discutir sistemas que têm como eixo estruturante a saúde baseada em evidências, com foco na saúde pública, em questões sociais e na equidade.
Na contramão, os sistemas baseados no mercado tendem a apresentar dificuldades em lidar com os verdadeiros problemas de saúde da população. Na grande maioria das vezes, não conseguem promover saúde, muito menos em epidemias. Se a gente pegar, por exemplo, os EUA, houve uma demora para identificar que a epidemia estava iniciando, já que as pessoas não queriam pagar pelos exames diagnósticos. Isso exigiu adaptações que não seriam necessárias caso o sistema não fosse baseado na lógica de mercado.
Entender a saúde como um aspecto social é importante para promover populações verdadeiramente mais saudáveis, tendo a ideia de saúde como algo mais amplo e não somente como a ausência de doenças. Nesse sentido, sistemas como o SUS representam parte importante desse processo de promover saúde e qualidade de vida para a população.
Claro que não podemos atribuir toda a responsabilidade da saúde da população pelo tipo de sistema que o país tem. Evidências científicas mostram que a saúde é muito mais que o setor saúde. Envolve questões históricas, geográficas, culturais, políticas, etc. Assim, quando a gente tenta comparar o SUS com outros sistemas, é difícil. Aplicar sumariamente experiências de outros países aqui também pode ser um tanto quanto arriscado.
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Não é justo nem fácil comparar o NHS no Reino Unido com o SUS aqui. Apesar de terem lógicas similares, os sistemas foram criados em momentos diferentes, com financiamentos diferentes, articulação distinta entre o público e o privado, além de atender populações que possuem níveis de renda e desigualdade muito diferentes.
Assim, não temos como atribuir sucessos e insucessos numa epidemia somente pelo sistema de saúde do país. Porém, podemos prever que sistemas universais e públicos têm maior capacidade para lidar com a melhoria da saúde da população, principalmente em países com ampla desigualdade social, inclusive em momentos de epidemias.
A Espanha tem liderado estatizações de hospitais privados para lidar com o COVID, enquanto, no Brasil, parece haver subnotificações de casos justamente na rede privada. Você acha a estatização da saúde privada uma medida emergencial que deve ser considerada por aqui também?
Temos acompanhando as mudanças que estão sendo realizadas nos sistemas de saúde, especialmente na Europa. Há o caso da Espanha. Porém, a comparação entre os países é complexa e envolve muitos fatores. A decisão espanhola de estatizar hospitais privados parece acertada, mas só teremos maior grau de certeza quando a pandemia ar e conseguirmos ter evidências científicas comparativas sobre os diferentes cenários do mundo.
No Brasil, precisamos criar uma consciência coletiva sobre a pandemia e as consequências dela para o país. Estamos falando de pessoas que vão falecer, de famílias que arão por momentos estressantes, e indivíduos com possibilidade de sequela na infecção. Não é hora de pensarmos em serviços de saúde de forma isolada. É hora de solidariedade, humanidade e empatia.
Os serviços públicos e privados do Brasil têm que atuar de forma articulada. Uns como já fazem e outros como nunca chegaram a fazer. A disseminação do vírus é silenciosa e invisível, então toda parceria, apoio e conscientização são fundamentais para enfrentarmos a pandemia.
O SUS vem perdendo orçamento ano após ano, em especial após o Teto de Gastos. Seria a pandemia o momento de lutar para que os cortes e o teto de gastos sejam revertidos?
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A questão do orçamento do SUS é um problema histórico. Ele acabou nascendo com questões problemáticas de orçamento. Talvez esse momento da pandemia seja o momento para pensar novamente nessa questão do financiamento do SUS.
É um momento tenso, mas que pode ser motivo para refletirmos sobre nosso sistema. A luta por um maior financiamento do SUS deve ser constante, mas a situação do COVID talvez seja capaz de sensibilizar mais a sociedade para esse debate.
Não existe sistema universal e equitativo, baseado na saúde como direito social, que possa promover o atendimento de saúde com pouco financiamento. Acho que se fala bastante que “não falta dinheiro, o problema é má gestão”. Obviamente, a gestão adequada dos recursos é fundamental, mas, para ter gestão adequada, são necessários recursos suficientes.
Quais têm sido as medidas principais tomadas pela UFPel durante a pandemia?
A UFPel tem sido muito proativa nesse momento da pandemia. De diferentes formas, tem dado sua contribuição para a sociedade, para o sistema de saúde e para a população. Mesmo sem ter, à época, casos confirmados na cidade de Pelotas, a UFPel criou, em 13 de março, um comitê interno para acompanhamento da evolução da pandemia. E, nesse dia, após amplo debate, decidiu por suspender as atividades acadêmicas, buscando contribuir para evitar a ocorrência de um grande número de casos de forma simultânea, o que poderia sobrecarregar o sistema de saúde.
Já temos evidências mostrando que grande parte da população vai ter a infecção pelo Coronavírus, mas é fundamental a velocidade com que as pessoas são infectadas. Isso terá um impacto muito grande no sistema de saúde caso muitas pessoas, de forma simultânea, acabem se contaminando.
Acho que, tão importante quanto ter suspendido as atividades, é o fato de que esse comitê tem atuado diariamente para acompanhar a pandemia na UFPel e na região. Em diferentes aspectos, o comitê vem gerando ações e recomendações para toda a comunidade, incluindo alunos, familiares, pessoas próximas, servidores, terceirizados.
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O comitê produz boletins diários desde o dia 16 de março. Todo o trabalho do comitê pode ser acompanhado na página da UFPel http://ccs2.ufpel.edu.br/wp/covid-19/
Lá vocês encontram o email do comitê, que pode ser utilizado por todos que tenham dúvida e queiram entrar em contato.
Há algo mais sobre o COVID e a saúde pública que você gostaria de colocar?
A epidemia do COVID exige que a gente siga todas as medidas que estão postas para prevenir a contaminação. Todas estão sendo bem faladas, mas vale a pena repetir. Evitar aglomerações; usar todas as estratégias individuais de proteção, principalmente a lavagem de mãos; evitar medidas extremas que não vão contribuir, como comprar todo o estoque de um item, como álcool gel ou papel higiênico. E manter a calma.
É uma situação muito grave, mas é ageira. A tendência é que, em alguns meses, e. A velocidade com que isso vai acontecer é variável, mas a pandemia será ageira. A forma com que lidaremos com a pandemia é que determinará o impacto dela.
É recomendável acompanhar diariamente a pandemia, pois as mudanças estão acontecendo muito rápido. Cada dia sairão informações e recomendações novas. Por fim, é fundamental que as pessoas evitem criar e rear fake news, informações falsas. Assim como o vírus, o impacto das notícias falsas é silencioso e invisível, mas elas podem causar danos sérios a depender do seu alcance e efeito. Essas mensagens alarmistas, muitas vezes usadas indevidamente, com nomes de instituições e órgãos, só criam pânico.
É hora de agir com a responsabilidade, ter calma e seguir as orientações de fontes confiáveis para lidar com essa pandemia.
Noutro dia escrevi um texto sobre a cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem, responsabilizando parcialmente as novas tecnologias de comunicação. Disse: “Se por um lado as tecnologias deram voz à sociedade, por outro, nos têm distraído da concretude do mundo, de interação mais hostil, levando-nos a viver em mundos paralelos”. E: “No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades, mas sim no mundo virtual, um refúgio, retroalimentado pelo algoritmo, onde não há frustrações, mas sim gratificações instantâneas”. Bem, esse é um lado da questão. E não é novo.
Desde Freud se sabe que, diante do trauma, a criança dissocia-se para á-lo, refugiando-se na neurose, uma estratégia de defesa. Pois, assim como a criança abalada pelo trauma, as pessoas, diante das escalabrosidades do mundo concreto, fazem igual: elas podem se retirar para o mundo virtual, guardando, daquele, uma distância.
O outro lado da questão, o reverso da moeda, é que, sem as novas tecnologias de comunicação, a voz traumatizada da sociedade permaneceria atravessada na garganta, sem chance de extravasar-se.
A possibilidade de expressão liberou uma carga de justos ressentimentos contra os limites da política, as injustiças, o teatro social. De súbito, tivemos uma ideia do tamanho da insatisfação com os sistemas de vida, ando publicamente a protestar, em alguns casos chegando à revolução, como ocorreu na Primavera Árabe, onde as redes sociais cumpriram um papel fundamental.
Pois não é por outra razão que os donos do antigo mundo estão incomodados e querem controlar a liberdade de expressão, especialmente a velha imprensa, os monopólios empresariais, os sistemas políticos totalitários. Enfim, todos aqueles para quem a internet e as redes sociais ameaçam seu poder, ao por de pernas pro ar as certezas convenientes sobre as quais se assentaram.
Fato. As inovações desarranjam os mercados e os modos de vida. Toda inovação faz isso. É o preço do progresso. Mas, assim como é impossível voltar ao tempo do telégrafo (imagine o desespero nas Bolsas de Valores), é impensável retroagir ao mundo exclusivo da prensa de Gutenberg. Porque as descobertas, afinal, permitem avançar nos arranjos produtivos: propiciam economia de tempo, dinheiro e, no caso da comunicação, ampliam a liberdade, seu bem mais precioso. Pode-se dizer que não estávamos preparados para tanta liberdade súbita, e que venhamos, neste momento, usando-a “mal”. Contudo, parece razoável dizer que, à medida que o tempo e, estaremos mais e mais preparados para lidar com a liberdade e seus efeitos.
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Com todos os defeitos que a vida tem, é preferível mil vezes, ao controle da palavra, a liberdade de dizê-la. Quem pode afirmar (ou julgar) o que é verdadeiro e o que é falso, senão as pessoas mesmas, em última análise, de acordo com suas percepções e as pedras em seus sapatos? Pois hoje, depois de provarmos a liberdade trazida pelas novas tecnologias, mais do que nunca sabemos que a imprensa, em sua mediação da realidade, é falha, e como o é!
É interessante (e triste) ver como, após a criação da internet e das redes, grande parte da imprensa, ao perder o monopólio da verdade, se vêm tornando excessivamente opinativa e crítica das novas tecnologias. Deveria, sim, era aprimorar-se no trabalho para prestá-lo melhor. Acontece que — eis o ponto — como a velha imprensa não é livre de fato, como depende do financiador, muitas vezes de governos, ela vê nas novas tecnologias de ampla liberdade uma ameaça à velha cadeia de produção acostumada a filtrar o que valia ser dito, e o que não valia, em seu óbvio interesse, hoje nu, como o rei da história.
Além de tudo, há essa coisa interessante: a percepção. Para alguns pensadores do novo mundo, o que chamamos de realidade é uma simulação, no que concordo. Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros, paladares etc. não existem no mundo concreto (são imateriais), sendo portanto simulações percebidas pelos sentidos (pessoas veem cores em diferentes matizes, quando não divergentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado exclusivo dos nossos sentidos. Assim, a única coisa real seria a razão. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. “Penso, logo existo”.
Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos com que amos o mundo concreto, estando entrelaçados, não haveria diferença entre eles. Logo, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor. Eu acredito que é assim.
Uma vez provadas as inovações, não é possível retroagir. Podemos, isso sim, é refinar, em decorrência delas, o nosso comportamento.
Algo mudou na relação entre o jornalismo e os pelotenses. Até por volta de 2015, havia um marcado interesse nos assuntos da cidade. Um mero buraco, e nem precisava ser o negro, despertava vívida atenção. Agora já ninguém dá a mínima. Nem mesmo se o buraco for um rombo fruto de corrupção numa área de vida e morte, como a de saúde. O valor da notícia sofreu uma erosão nas percepções. Não é uma situação local, mas, arrisco dizer, do mundo.
Vem ocorrendo uma cisão no vínculo entre as pessoas e o meio em que vivem. Um corte entre elas e a vida social. O espaço, que no ado era público, já hoje parece ser de ninguém.
A responsabilidade parcial disso parece, curiosamente, ser das novas tecnologias de comunicação. Se por um lado elas deram voz à sociedade como um todo, por outro, ao igualmente darem amplo o ao mundo virtual, elas nos têm distraído da concretude do mundo, de interação sempre mais hostil — distraído, enfim, da realidade mesma, propiciando que vivamos em mundos paralelos.
Outra razão é que, no essencial, nada muda em nossa realidade. Isso ficou mais evidente porque as redes sociais deram vazão, sem os filtros editoriais da imprensa, a um volume de problemas reais maior do que o que era noticiado. Se antes já havia demora nas soluções, essa percepção foi multiplicada pelo crescente número de denúncias feitas nas redes pelos próprios cidadãos. Os problemas que dizem respeito à coletividade se avolumam sem solução a contento, desconsolando e fatigando a vida.
Como a dinâmica da cidade (e da realidade) não responde como deveria, eis o ponto, estamos buscando reparações no ambiente virtual, sensitivamente mais recompensador, além de disponível na palma da mão.
No mundo moderno, não habitamos mais exatamente nas cidades. Estamos habitando no mundo virtual, onde não há frustrações, mas sim gratificação instantânea. Andamos absortos demais em nossa vida. Abduzidos por temas de exclusivo interesse pessoal, retroalimentados minuto a minuto pelo algoritmo.
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Antes vivíamos num mundo de trocas diretas entre as pessoas. Hoje habitamos numa nuvem, no cyber-espaço. Andamos parecendo cada dia mais com Thomas Anderson, protagonista do filme Matrix. Conectado por cabos a um imenso sistema de computadores do futuro, ele vive literalmente em uma realidade paralela. Isso dá
Para complicar tudo, há pensadores para quem a realidade é uma simulação.
Segundo eles, cada um de nós só tem o às coisas através dos sentidos (olfato, visão, tato, audição, paladar). Porém, como cores, cheiros etc. não existem no mundo concreto, mas são simulações percebidas pelo nosso corpo (pessoas veem as cores em diferentes tons, quando não em diferentes, como os daltônicos), aqueles pensadores sustentam que o mundo como o percebemos seria resultado dos nossos sentidos.
Assim, a única coisa real seria a razão, quer dizer, o modo como processamos aquelas percepções dos sentidos. É o que diz Descartes, para quem a razão é a única prova da existência. Como amos o mundo virtual pelos mesmos sentidos que amos o concreto, não haveria diferença entre eles.
Segundo aqueles pensadores, como o mundo virtual está entrelaçado com o mundo concreto, não deveríamos condenar o mundo virtual, mas sim o explorarmos melhor.