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Essa história da garrafa jogada ao mar na Groenlândia por marinheiros soviéticos em 1985, contendo uma mensagem escrita, faz aflorar em nossa memória uma pá de aventuras literárias, a mais remota tendo como personagens náufragos pedindo ajuda para não morrer, mas também gênios que emergem de fumaças, capazes de fazer tudo por nós.
Nada a ver com literatura e lendas a garrafa soviética, encontrada outro dia por acaso à margem da praia do Hermenegildo; contudo, ainda assim um frasco com magia.
Produzida pela indústria russa de destilados, a garrafa continha originalmente vodka, e, uma vez bebida, foi arremessada pelos marinheiros ao mar quatro anos antes da Queda do Muro de Berlim, como homenagem a um certo capitão, provavelmente o capitão do barco em que todos estavam.
Em parte, tudo não a de suposição. Após o brinde, os urras e as ingestões, alguém teria vedado no cilindro a saudação e vupt, lá foi a garrafa ondular em mar aberto.
O trecho revelado do manuscrito contém um tom altivo, orgulhoso, desafiador; coisa de marujos, supõe-se, com tempo de sobra em noites mansas para pensar na vida.
A íntegra do trecho diz que “ela (garrafa) foi bebida contra todas as ordens e orientações de MDH (provavelmente um tipo de manual náutico) e do governo, pelos verdadeiros marinheiros que lembram das tradições marinheiras e as observam no dia de homenagem do honrado marinheiro, capitão de longas viagens, Iudin. V.A., no dia de seu aniversário”.
Para o meu gosto, o caráter subversivo do bilhete é a parte mais interessante da história.
Além de deduzir, pela abreviação do nome do homenageado, que o arremesso da garrafa não foi uma rendição festiva a um ancestral heroico do mar, mas sim ao bem vivo capitão a bordo, podemos deduzir também que ele próprio tenha tido ciência da quebra das regras de navegação. Não faria mesmo sentido uma homenagem do tipo a um homenageado alheio ao gesto.
Ninguém por certo bebeu além da conta naquele dia (ou será que sim?), mas, como é sabido, garrafas com poções de embriagar e mares a perder de vista não são incompatíveis.
Por um ângulo, o que aconteceu a bordo do navio foi uma pequena rebelião do homem contra o Estado, em nome do indivíduo, festejado pelo mérito de ter sobrevivido um ano mais. Uma modesta celebração premonitória, cumprida talvez em tom cúmplice, ao que estava por vir em 1989, quando o Muro ruiu e a URSS se desfez em várias nações que requeriam independência.
* A professora Paula Souza, da UFPel, segue trabalhando para conseguir decifrar o restante do manuscrito.