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Cultura e entretenimento

A tumba de Kafka

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Mario Vargas Llosa

Publicado originalmente em El País

Está no novo cemitério judaico de Praga, no bairro de Strasnice, enterrado junto a seus pais e suas três irmãs, que morreram nos campos de extermínio nazistas. Na verdade, esta bela cidade é praticamente um monumento ao mais ilustre de seus escritores. Toma todo um dia visitar as esculturas a ele dedicadas, as casas onde viveu, os cafés que frequentava e o magnífico museu, e em todos estes lugares coincido com bandos de turistas que tiram fotos e compram seus livros e souvenires. Eu também o faço: dos escritores que iro, colecionaria até seus ossos.

Comove-me ver, no Museu Franz Kafka, muitas páginas da sua Carta ao Pai, que nunca enviou. Tinha uma letra arrevesada e saltitante, que, às vezes, pareciam desenhinhos de HQs. Essa enorme carta foi a primeira coisa que li dele, quando era adolescente. Eu me dava muito mal com meu pai, de quem tinha um medo pânico, e me senti totalmente identificado com esse texto desde as primeiras linhas, sobretudo quando Kafka acusa seu progenitor de tê-lo tornado inseguro, desconfiado de todos, de si mesmo e da sua própria vocação. Recordo com um calafrio aquela frase em que Kafka explica sua insegurança a ponto, diz, de não confiar em mais ninguém e mais nada, exceto o pedacinho de terra que seus pés pisam.

Este museu, diga-se de agem, é o melhor que já vi dedicado a um escritor. Sua penumbra, seus corredores labirínticos, seus hologramas, os filmes arruinados da Praga do seu tempo, as grandes gavetas misteriosas que não podem ser abertas, e até a tenra canção em iídiche entoada por uma moça que parece de carne e osso (mas não é) não podem ser mais kafkianos. Tudo o que se sabe dele está exposto ali, e de maneira sutil e inteligente. As fotos mostram a trajetória fugaz dos quarenta e um anos que viveu; aparece quando menino, quando jovem e quando adulto, a figurinha estilizada, o olhar penetrante e suas grandes orelhas curvas de lobo da estepe.

Há um texto maravilhoso escrito quando, recém-formado advogado, acaba de começar a trabalhar numa companhia de seguros (de oito a nove horas por dia, seis dias por semana), afirmando que esse trabalho matará sua vocação, porque como poderia chegar a ser um escritor alguém que dedica todo seu tempo a um estúpido afazer alimentício? Exceto os rentistas, todos os escritores do mundo se fizeram perguntas parecidas. Mas este fez o que a maioria deles não costuma fazer: escrever quase sem parar, em todos os momentos livres que tinha, e, embora tenha publicado muito pouco em vida, deixar uma obra que, incluídas suas cartas, é de longuíssimo fôlego.

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Nada me parece mais triste que alguém que sentia intensamente essa vocação e que, como Kafka, foi capaz de escrever tantos livros jamais tenha sido reconhecido enquanto vivia, e só postumamente se notasse que foi um dos grandes escrivinhadores de todos os tempos (W.H. Auden o comparou a Dante, Shakespeare e Goethe e disse que ele, como aqueles, era a síntese e o emblema de sua época). As coisas que publicou em vida aram praticamente despercebidas, e isso que entre elas figurava A Metamorfose. O pedido a seu amigo Max Brod para que queimasse seus inéditos revela que acreditava ter fracassado como escritor, embora talvez restasse alguma esperança, porque, do contrário, ele mesmo os teria queimado.

A propósito de Max Brod, um dos poucos contemporâneos que acreditavam no talento de Kafka, há agora, por motivo da aparição do livro Kafka’s Last Trial, de Benjamin Balint, uma ressurreição dos ataques que já lhe fizeram no ado, inclusive críticos e intelectuais tão respeitáveis como Walter Benjamin e Hannah Arendt. Que injustiça! O mundo deveria estar para sempre grato a Max Brod, por ter, em vez de acatado a decisão do amigo a quem estimava e irava, salvado para os leitores do futuro uma das obras mais originais da literatura. Em sua biografia e em seus ensaios sobre Kafka, Brod pode ter exagerado a influência que o misticismo judaico exerceu sobre ele, e talvez tenha se equivocado ao deixar em seu testamento à senhora Esther Hoffe os inéditos que ainda restavam, razão pela qual o Estado judaico e a Alemanha aram muitos anos litigando por aqueles textos (finamente foi Israel que ficou com eles), tema sobre o qual versa o por outro lado estrambótico livro de Benjamin Balint. Ninguém que desfrute verdadeiramente lendo Kafka deveria lê-lo. Os que o atacam teriam que estar conscientes de que nada do que dizem em suas análises sobre Kafka seria possível sem a decisão extraordinariamente sagaz de Max Brod de resgatar esta obra essencial.

Hermann Kafka, o destinatário da impressionante carta que seu filho nunca lhe enviou, era um judeu humilde, que não teve contato nenhum com a literatura. Dedicou-se ao comércio, abrindo lojinhas de armarinhos que tiveram certo êxito e elevaram os níveis de vida da família. Mas havia nele algum germe de excentricidade kafkiana, porque como é possível que asse a vida mudando de apartamento, inclusive dentro de um mesmo quarteirão? Os guias dizem que se mudou doze vezes de residência, e que não menos mudanças experimentaram suas lojas. A família se considerava judia e falava alemão, como a maioria dos tchecos de então, e não era particularmente religiosa. Kafka tampouco o foi, pelo menos até que chegasse a Praga aquela companhia de teatro em iídiche que tanto o impressionou. O museu documenta muito bem os efeitos dessa experiência, o empenho com que se pôs a estudar hebraico (que nunca chegou a aprender), a ler livros sobre o hassidismo e outros movimentos místicos, assim como o belíssimo texto que escreveu sobre aqueles atores e atrizes que faziam teatro em iídiche, sobrevivendo com as miseráveis gorjetas que o público lhes atirava na rua ou nos cafés onde atuavam.

O museu também dá detalhes sobre as quatro namoradas que Kafka chegou a ter e sobre como eram complicadas suas relações sentimentais. Apaixonava-se, sem dúvida, e era um amante tenaz, monopolizador, e lhes propunha casamento. Mas, assim que aceitavam, recuava, aterrorizado por ter chegado tão longe. A insegurança o perseguia também no amor. Pelo menos três dessas namoradas sofreram com esses desplantes; com uma delas, Felicia Bauer, celebrou o noivado com uma festa, poucos dias antes de rompê-lo. Com a amizade era muito mais constante. Seu melhor amigo foi sem dúvida Max Brod, que, naqueles anos, já tinha um nome literário e havia publicado alguns livros. Foi um dos primeiros em perceber o gênio de Kafka e o estimulou sem trégua a escrever e a acreditar em si mesmo, algo que efetivamente ocorreu, pois Kafka, pelo menos quando escrevia, perdia a insegurança da qual sempre padeceu e se tornava um insólito e seguro fazedor de pessoas e histórias. Uma tuberculose galopante acabou com sua existência, no começo da maturidade. Hitler deu cabo do resto da família.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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