Diante de mim, um hall sombreado de tijoletas frias, uma estátua de Nossa Senhora, um sino e, ao fim de um corredor, duas portas que se abrem para um jardim banhado de sol.
Enquanto aguardo ‘ok’ da direção para circular pelo prédio, o porteiro Luís esfrega as mãos entre as coxas e me conta da vez que salvou um jovem num afogamento. “Foi outro dia, num açude. Como se fosse um moicano, um garoto soltou um grito de guerra, mergulhou e parecia que não ia voltar”.
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O jardim do Asilo de Mendigos de Pelotas fica no centro de um quadrilátero de paredes cor do deserto e 20 janelas que rivalizam em altitude com coqueiros que se alinham, em pares, como guardiões das três escadas de mármore de o à construção centenária. No pé de uma, insinuam-se esculturas romanas de mulheres sensuais.
Se nas ruas da cidade, cães abandonados disputam lugar com os antes, no asilo, o domínio é manso e ordeiro – felinos repousam sob os bancos do jardim. Uma gata branca de olhos azuis boceja diante de uma fonte, onde pequenas esculturas de sapos e garças sugerem a infância, encimadas por outra estátua da Virgem Maria.
Um interno, não tão idoso assim, apesar dos cabelos brancos, sopra uma gaita. Músicas gauchescas, que sugerem sua origem rural, preenchem o ar enquanto um funcionário esclarece que, se desejo colaborar, devo conversar com os idosos.
Há duas alas, uma para mulheres, outra para homens, onde estou. O silêncio parece reverberar dentro do casarão, e um cheiro forte, algo desagradável, remete à ancianidade. Apesar do nome, não há mendigos no asilo. Todos pagam mensalidade em troca de teto, alimentação, atendimento médico e odontológico.
a das 13h. Os internos aguardam o lanche das 14h, café com manteiga e pão. Alguns estão recostados em poltronas, outros em cadeiras de roda, nas cercanias do refeitório. Outros esperam nos dormitórios o toque do sino anunciando a refeição. Os que não possuem quarto privativo mantêm os ouvidos atentos ao sino em sombreados alojamentos coletivos, em camas identificadas por tabuletinhas de números; sobre uma, com surpresa, vejo um elefante de pelúcia lilás do tamanho de um pastor alemão.
Na cama 48, descansa o ex-jóquei profissional Antônio Nunes de Almeida. Foi-se o tempo das emoções fortes e dos sacrifícios, instantes registrados em fotografias penduradas à parede ao lado de sua cama. Aos 66 anos, ele se dirige em os curtos ao refeitório, sentindo-se um ho-mem livre.
Há vinte anos, depois que abandonou as pistas e os prêmios, ele não precisa mais manter o peso nos 52 quilos exigidos dos jóqueis.
“Foi uma época boa. Mas, como sempre lutei com a balança, e havia corrida cinco dias na semana, só comia em dois; nos outros, tomava café. Meus bolsos viviam estufados de dinheiro, mas não podia me alimentar”, conta.
Uma foto o mostra na flor da idade, na montaria de um cavalo vermelho, olhando com expressão infantil, como se estivesse no comando de um cavalinho de madeira. No dorso de animais de verdade ele conta que venceu mais de 300 corridas nos hipódromos da Tablada, em Pelotas, e no Cristal, em Porto Alegre, até ar à função de tratador dos animais, mas isso é coisa do ado.
O refeitório tem a simplicidade de um quartel. Cada idoso ocupa lugar certo à mesa. Alguns recebem alimentos na boca, como arinhos. Dois personagens me acionam fragmentos da memória de décadas atrás. Tenho a sensação de que os conheci do lado de fora dessas altas paredes que parecem buscar o céu, mas não consigo colar as imagens do ado e do presente.
Na cabeceira de uma das oito grandes mesas retangulares, um interno de grossos óculos quadrados parece mal-humorado. Fala pouco.
“Esse tem dinheiro. É dono de um monte de imóveis, deixou todos os 20 filhos bem de vida, mas nenhum quis ficar com ele”, me diz um funcionário.
Em frente dele, equilibrando óculos degradê quase femininos, numa escala do marrom ao amarelo que lembra a cor do iodo, um homem negro de mãos enormes e unhas que requerem uma tesoura bebe leite com vagar.
“Aquele é o Ventura (Cavalcanti)”, fala-me o funcionário. “Uma figura. Foi operador de máquinas agrícolas até se aposentar. Trabalhou muito na região de Caxias, na serra.”
Embora privado da visão do olho direito, que lembra uma lâmpada apagada, ele ostenta sorriso matreiro de dentes fortes, como se saboreasse uma graça secreta. Alto e atlético, exalando a conhecida jovialidade dos negros, não é difícil imaginar que uma mulher ainda possa se interessar por ele, apesar dos 77 anos.
Porque sou novo no cenário, ele me espreita, a exemplo de alguns de seus colegas, enquanto sirvo à mesa e alimento um interno. Outros me acenam a cabeça, como Ventura faz por trás dos óculos, que jamais tira. O ex-jóquei Antônio me acena com a mão.
Pelas manifestações, sinto como se minha presença tivesse sido aprovada no ambiente. Uns poucos não reagem. Esses não são velhos, possuem deficiência mental, e parecem imersos num mundo só seu. Um deles possui a estrutura física de um garoto; no lugar dos olhos, duas meias luas brancas não impedem que ele circule pelo casarão, guiando-se pelas vozes e o caminho decifrado.
Ao lado do refeitório, uma sala abriga uma televisão de 50 polegadas. Depois das refeições, parte dos inquilinos se acomoda em frente do retângulo iluminado, embora ninguém se atreva a mudar a estação.
Alguns retornam às sombras dos quartos, sintonizam rádios de pilha ou comem uma fruta – em geral banana e maça. Outros preferem o pátio, o sol e os canteiros, onde rosas, hortênsias, orquídeas e jasmins vivem entre folhagens cor de vinho e verde.
Uma bonita capela asseada, onde todos os dias há missa, permanece vazia – raros a frequentam fora do horário das pregações.
“Eu sou um homem feliz”, surpreende-me o ex-jóquei, achegando-se do banco de jardim. Traz nas mãos outras fotografias – com a neta no colo, com chapéu campeiro e camiseta do Grêmio, como tratador de cavalos.
“Tive uma vida boa. Gosto daqui, onde sou bem tratado”, diz, juntando as mãos como numa oração. Com meu trabalho, consegui comprar duas casas, onde moram minha ex-mulher e minha irmã. Sou livre para visitar meus parentes, viajo sozinho com um e rodoviário que ganhei de presente de uma médica”.
Ventura fala menos que Antônio. Observa mais, e continua sorrindo, mesmo diante de pregação de um rapaz da igreja que toda semana visita o asilo. O jovem traz uma bíblia de capa preta nas mãos e procura catequizar um grupo. Em frente dele, ao lado de Ventura, um velho magro de bigode ralo parece não entender as palavras do pregador.
O rapaz insiste: “Seu Clóvis, escute bem. Seu problema, hoje, é dente. O senhor quer uma dentadura. Muito bem. Então, antes de realizar esse desejo, precisa elevá-lo em pensamento a Jesus. Olha só o que fala a bíblia: Deus diz que…”.
Esfregando indicador e polegar, Clóvis rebate: “O problema é dinheiro. O doutor quer R$ 11 mil pela dentadura”.
Ventura calça melhor os chinelos, levanta-se e começa a afastar-se como se margeasse um precipício.
O ex-jóquei volta a segurar-me pelo braço, como tem feito desde que conversamos. Repete-me “muito obrigado, o sr. é meu amigo para sempre”.
Quintas-feiras são especiais. Na tarde desses dias 10 mulheres trazem alarido ao casarão. Carregam sacolas com mimos gastronômicos, um caderno com letras de música. Abraçam idosos no pátio, estendem a eles doces e salgadinhos. Mostram afeto e são retribuídas.
“Elas são boas pra nós”, diz o gaiteiro que vi na chegada, intimando-as: “Não se esqueçam de voltar na semana que vem”. Elas sorriem da escada, pois sempre voltam, e desaparecem no prédio, onde percorrerão os cômodos. Sem auxílio de instrumentos, as mulheres entram num quarto e começam a mexer os corpos e a cantar:
“Tá sassaricando, todo mundo leva a vida no arame / tá sassaricando / a viúva, o brotinho e a madame / o velho, na porta da Co-lombo, é um assombro, sassaricando…
A cantoria atrai o ex-jóquei ao quarto. Ele chega de mansinho e tira a mais madura das visitantes para dançar. Marcando ritmo com palmas, enfermeiros e outros internos também cantam. “Assim vou acabar perdendo meu marido”, brinca a parceira de Antônio, rindo da própria frase.
Concentrado e sorrindo para si, Antônio ignora e continua a rodar com ela.
Retirando-se com o show para outro quarto, as mulheres são obrigadas a voltar e atender mais um pedido, feito por idoso quase inaudível. Elas reabrem o caderno: “Que beijinho doce, que ela tem / depois que beijei ela, nunca mais amei ninguém….” .
Um dos funcionários se aproxima de mim: “Para fazer esse trabalho, temos de ter bom humor e alegria, senão fica difícil”.
Depois do impacto inicial, em que uma leve depressão domina o visitante, percebe-se que o bom humor é regra no asilo. Brincadeiras e piadas movem os funcionários, que se revezam nas tarefas de servir o almoço aos idosos, empurrá-los em cadeiras de roda, banhá-los.
De vez em quando um dos internos emite gritos esganiçados de socorro, socorro, socorro, socorro, socorro… Mas logo se acalma, quando alguém se aproxima.
De modo geral, os internos, como crianças, carecem de atenção e afeto. Não sem surpresa, pensando em dar carinho, o visitante descobre que recebe mais afeto do que doa.
“Eu vou tocar para ti”, avisa-me o gaiteiro no jardim.
Depois do anúncio cultural, feito numa das escadas, José Daniel Pinto (só agora eu me lembro de perguntar o seu nome) some no casarão; logo volta, trazendo duas gaitas de boca de sua coleção, uma vermelha, outra azul, fabricadas na China. Em segundos inunda o ar com seu repertório gauchesco e acrescenta elementos cênicos, ando a dançar em movimentos pendulares laterais.
“Tira uma foto de mim”, diz.
Lembro a ele que estou sem a câmara e que pretendo fotografá-los outro dia. Ele insiste: “Usa o celular”. Click… Depois, vendo as imagens que captei, alegra-se e diz “olha eu, que legal”, e ri.
No último dia que ei no asilo, convivendo com os idosos, o gerente me chamou à sua sala. A a me viu fotografando e quer saber o que pretendo.
“Temos essa preocupação, pois nem sempre as famílias gostam de ver seus parentes expostos de maneira equivocada”, disse-me o gerente. “Está certo”, tranquilizo-o, pensando que talvez o receio seja outro.
Na despedida, apertos de mão, abraços e promessas de retorno. “Meu amigo, tu é meu amigo para sempre”, relembra Antônio. Ventura se levanta para tirar uma fotografia comigo e o ex-jóquei, e pela primeira vez ri com vontade.
Porteiro Luís, o salva-vidas, abre-me a porta da rua. Do lado de fora, o ex-jóquei Antônio e sua antiga profissão me vêm à cabeça:
A vida de uma pessoa não deixa de ser uma corrida de cavalos ao contrário. Quando os animais se aproximam da linha de chegada, a vibração é mais intensa. Na etapa final da existência humana, o clima é o mesmo da largada nos hipódromos, um estado de tensão sem alarde.
Não é possível mais desfazer as apostas que fizemos.