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A falta de temas novos em Pelotas é tanta que chega a ser um milagre que os veículos de comunicação continuem a existir, sobretudo depois da internet. Nas redes sociais, informação útil, que já era escassa, foi pulverizada, ficou barata.
Minha sensação é de que, em termos de noticioso local, vivemos espremidos na ponta de um iceberg, sem jamais explorar a parte submersa que sustenta o pico. Tanta coisa sabida e não dita…
A psicanálise utiliza a imagem do iceberg para explicar a mente humana. Diz que nosso “eu”, nosso “consciente”, é a ponta do iceberg. Já o grande bloco de gelo mergulhado seria o “inconsciente”, uma área onde vivem confinadas as pulsões reprimidas, os medos e as mágoas.
O inconsciente seria a parte que nos dita o comportamento, sem que percebamos, e não o percebemos, segundo os analistas, porque nossa consciência seria “limitada de propósito” pelo instinto de sobrevivência. Resumindo, querendo ou não, nós seríamos também o reflexo dos efeitos daquilo que ocultamos de nós mesmos.
É uma conversa meio complicada e chata. Mas há uma graça na coisa.
A parte engraçada é que, mesmo que recusemos aquilo que não queremos que nos defina, aquilo acaba vindo à superfície, muitas vezes na forma de atos falhos e de gafes. Nessas ocasiões, como em geral os outros já estão rindo de nós, acabamos rindo também, pois ficar sério tornaria tudo ainda mais cômico, e porque o riso sempre devolve o senso de proporção da realidade.
O sentido de humor é um amigo nosso, pois a seriedade excessiva leva ao absurdo.
Dito isso, gostaria de comentar um ato da prefeitura que vem reverberando como crítica nas redes sociais.
Com semblante pétreo, há alguns meses a prefeita anunciou que 2018 seria um ano de contenção de gastos, por causa da crise. Uma sensata recusa oficial aos gastos fúteis numa época em que governos e cidadãos vivem com cintos apertados. Ela reuniu seus secretários de governo e pediu a eles exatamente isto: que apertassem os cintos.
Eis que vem a tal notícia que anda causando nas redes, de que a Municipalidade contratou, por licitação, uma empresa de Porto Alegre para fornecer serviços de buffet, na forma de cafés da manhã para recepções no Salão Nobre do prédio oficial.
Um vereador de oposição, Ivan Duarte (PT), protestou. Ivan é infelizmente uma voz isolada na Câmara, onde a maioria é pró-governo. Ele subiu à tribuna e estendeu um documento comprovando a licitação e o valor do contrato do buffet: R$ 71,8 mil por um ano de abastecimento. Ivan não vê ilegalidade, mas considera o gasto alto, inadequado em época de vacas magras, além de uma contradição com a política de cintos apertados.
Em seguida, o vereador descreveu os termos do contrato, relacionando os dois tipos de café previstos para os comensais.

Ivan Duarte e o documento comprovando a contratação do Buffet por licitação
Mais do que o certame e sua finalidade, a descrição dos itens da cesta é um daqueles momentos em que tudo fica ainda mais cômico. Além de não achar graça, a prefeitura protestou. Foi o que fez o líder do governo na Câmara, advogado Fabrício Tavares (PSD).
Tavares subiu à tribuna com ar indignado, advogando a defesa do buffet com uma justificativa “técnica”, como se mudasse o paladar da questão. O líder do governo alegou que “não houve licitação”, mas sim apenas uma “Ata de Registro de Preço”… (???)
Ivan Duarte voltou então à tribuna para esclarecer o colega. Abriu todos os documentos e deixou claro que “Ata de Registro de Preço” é uma “modalidade de licitação”, como prova o documento oficial (da própria prefeitura) que ele estende na foto acima.
O contrato com a Core prevê dois tipos de cafés da manhã a serem servidos no Salão Nobre:
- Café Simples: Café preto, leite, 1 suco, 1 chá, 1 sanduíche pronto e 2 frutas. Custo por pessoa R$ 36,63.
- Café Superior: Café preto, leite, 2 sucos, 2 chás, um refrigerante (com opção diet), 2 tipos de pão (um integral), 2 garrafas de água mineral (uma com gás, outra sem gás), 1 tipo de queijo, fornadas de pão de queijo, 2 sanduíches, 2 tipos de geleia, 3 frutas, 1 tipo de quiche ou torta salgada, manteiga, requeijão e mel. Custo por pessoa: R$ 63,60.
A contratação é legal, e o valor, se a gente for pensar, embora possa ser maior que o cobrado por um café colonial numa vivenda, vá lá, não chega a ser tão absurdo, considerando o serviço que vem junto com os mantimentos. Além disso, ninguém deseja impedir autoridades e convidados de fazerem uma refeição matinal digna com dinheiro do contribuinte.
No máximo, o episódio convida, talvez, a uma visita aos livros de psicologia. Se os seres humanos acabam a contragosto expressando aquilo que recusam em si, e considerando o relaxamento da determinacão oficial de fazer economia, podemos dizer que a prefeitura cometeu uma gafe por ato falho. De repente, o cerimonial deixou de reparar na essência da verdadeira etiqueta social.
O episódio foi útil porque ajudou os jornalistas a variarem os temas.