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Pablo Rodrigues*
O futebol ensina. Por trás de cada e despretensioso para o lado, há um punhado de histórias cheias de derrotas, de fracassos gritantes, mas também de vitórias inexplicáveis, de alegrias abertas à esperança de uma nova vida que nunca nascem sozinhas. Histórias de batalhas vencidas por uma espécie de armada invisível, disposta aos maiores sacrifícios.
Taison ou fome. E o texto poderia terminar aqui – o principal estaria dito: a vida é senhora de ausências e milagres. Não fosse a macarronada feita por um dirigente do Progresso e talvez a jovem e magricela promessa não tivesse marcado três gols naquele dia contra o Inter. Porque não havia almoçado. E não havia almoçado porque são assim os dias nos bairros mais pobres de Pelotas: dias feitos de pão contra dias de não.
Talvez não tivesse despertado os olhares do time da capital. Talvez jamais tivesse deixado o Navegantes para onde hoje, coração nos lábios, sempre volta. Santa e milagrosa macarronada. Santo pão feito de trigo, farinha e trabalho humano. Santos pés e pernas e dribles. Santas ruas de chão batido. Santas pracinhas públicas em que a meninada pode escapar dos buracos e transformar pares de chinelo em traves. Santo segundo antes do gol – a suspensão do mundo, o cabeceio no alto, o ar parado. Dadá nos acuda!
O futebol ensina. E salva. Contra toda desesperança, salva. Resgata. Não poucas vezes. Faz o que poder público deveria fazer: olha para quem pouco ou quase nada tem. O maior nome do futebol pelotense em atividade ou fome nesta mesma Pelotas que cresce assustadoramente, tem uma legião de miseráveis, permanece sem justiça social e começa, contraditoriamente, a ensaiar um discurso meritocrático. Sem oportunidades iguais, o discurso do mérito sempre será falacioso.
Quantos, como Taison, talentosos como ele, hoje estão em Pelotas, como ele esteve, cuidando carros nas esquinas? Quanto valor desperdiçado em cada pessoa esmagada pela falta de condições mínimas? Esmagada pela ânsia de suprir a mais básica e primitiva das necessidades: a de comer. Nascido no Sul do Sul, Taison é, antes de tudo, um forte. E, neste ano de eleições, talvez não haja político digno sequer de amarrar os cadarços de suas chuteiras.
O futebol ensina. Porque, invariavelmente, recorda a importância de um pai e de uma mãe. A de Taison teve 11 filhos. E criou todos. Não sem dor. Não sem angústia. Não também sem uma força interior capaz de fazer inveja à mais disciplinada das pessoas.
Para alimentar os seus pequenos, dona Rosângela trabalhou como doméstica e várias vezes recorreu ao sopão distribuído pelas igrejas. O excelente perfil feito pelo Tino Marcos e produzido pelo Marcelo Prata, jornalista formado pela Universidade Católica de Pelotas, mostrou ao país com delicadeza e responsabilidade o essencial na vida de Taison: uma mãe sorridente e orgulhosa, que se tornou, de certo modo, um pouco a mãe de todo mundo, a mãe da gente também.
O futebol ensina. Porque é sempre sobre mais do que apenas 22 pessoas correndo atrás de uma bola. É sobre tudo o que se precisou driblar para chegar até aqueles 90 minutos de uma partida, seja de Copa do Mundo ou de várzea. Porque também a várzea tem seus encantos e gols espetaculares. Tem suas risadas e discussões, pernas para cima, pós-jogo, em outro tipo de copa, feita de largos balcões e de mesas e cadeiras enferrujadas. É eternamente febril o estado dos que amam o futebol. Se não fosse, como Taison resistiria a tantas contrariedades? Como aria um não ao sonho de jogar em time grande por ser franzino? Como não ser franzino quando se tem fome? Nunca é somente futebol, meus amigos e minhas amigas. Nunca será. É sobre fomes. De bola e de macarrão.
Sartori apareceu em primeiro na preferência dos gaúchos para o governo do Estado. Ao menos é o que diz pesquisa publicada ontem no Jornal do Comércio. E juram de pés juntos que ela não foi feita somente em Caxias. O que Sartori não diz é por que pouco fez por quem pouco tem. Em seu encalço, vem Eduardo Leite. E fala, por cifras, em mais austeridade. Austero é o prato vazio. Rosseto, Jairo Jorge…
Todos olham as contas do Estado, multiplicam números. Falam pouco em gente, na gente que constrói este Rio Grande do Sul de regiões tão díspares. Às vezes, se parecem com um dos homens que o Pequeno Príncipe conheceu em certo planeta: “Conheço um planeta onde há um sujeito vermelho, quase roxo. Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca amou ninguém. Nunca fez outra coisa senão contas. E o dia todo repete, como tu: ‘Eu sou um homem sério! Eu sou um homem sério!’ E isso o faz inchar-se de orgulho. Mas ele não é um homem; é um cogumelo.”
Tão comuns estes homens “cogumelares”. Tão sérios todos…
A Copa do Mundo começa amanhã. Taison já está na Rússia. Com ele, Pelotas inteira, mas, principalmente, o povo da periferia. Porque a vitória de Taison é vitória de quem não nasceu em berço de ouro. É a vitória de quem precisou descobrir, a cada dia, como sobreviver. É a vitória de quem ou fome e sentiu na pele o desamparo.
O futebol só é alienação para quem não enxerga para além da casca. A história do Taison e da família dele está aí para dar testemunho. Vale muito mais do que qualquer discurso que será dito até outubro. Porque é vida sofrida. Vida transformada. Vida em movimento.
Fica combinado, então: ninguém vai reclamar da Copa e dizer, com ares de intelectual, que é uma vergonha “tudo parar por causa de um jogo.” Os jogadores de futebol não são culpados pelos problemas sociais. Muito menos culpado é o próprio futebol. Em um país de mil e tantas misérias como o Brasil, o futebol é sinal de esperança. É a certeza de que existe ao menos a mínima possibilidade de alguém em completa desvantagem social virar o jogo.
Ao futebol, portanto. E, logo, aos deveres do voto!
O excelente texto de Pablo foi publicado originalmente no jornal Diário Popular, onde assina uma coluna. E reproduzido aqui com a gentil cortesia do autor.