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Opinião

O que eu senti vendo uma fotografia do Parque Una

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Outro dia me deparei com uma projeção fotográfica de quando estiver concluído o Parque Una, bairro planejado pela Idealiza Urbanismo, em construção atrás do shopping Pelotas. É uma foto artística.  Nela, vemos como ficará um empreendimento no futuro. Mas, como a  imagem é em preto e branco, parece que estamos vendo hoje uma cena de muitos anos atrás. É como se o observador tivesse sido transportado para 2060 e, de lá, olhasse um registro de 2030, considerando que o preto e branco não venha a ser abandonado. Eu não comecei este texto pelo começo.

Na verdade, a primeira coisa que senti vendo a foto foi o contraste entre o Una e a cidade. Pode soar exagerado, mas o impacto foi parecido com ver um templo margeado por amontoados irregulares de casarios feitos daquela pedra árabe cor de areia, com a personalidade opaca do deserto. Não se trata, porém, de “imponência arquitetônica, ostentação de poder ou exaltação do velho luxo europeu”, inspirações que moveram, por exemplo, nossos ricos charqueadores em termos estéticos, em tempos longínquos.

As construções elevadas à categoria de memória artística são de uma época distante, em que imitávamos a arquitetura do velho mundo. O belíssimo plágio predial ocorreu depois que os charqueadores, em meio aos seus matadouros, capatazes e todo o sangue, aram a considerar vulgar o cru ofício de abater bois, salgar a carne e vendê-la como alimento aos escravos, em perdidas viagens de navios mercantis pela costa, e resolveram amenizar os sentidos.

Tenho uma boa relação com os proprietários do Una, e os iro. Eu os acho inteligentes, não no sentido pétreo e presunçoso, mas no sentido líquido e corrente, como fibras óticas que vivem para a luz. Sou suspeito, portanto, para elogiá-los. Mas hoje em dia, depois das visitas que fiz ao Parque, de pesquisar o bairro e das entrevistas que realizei com eles, eu os compreendi melhor.

No ado eu critiquei a idealiza, quando inauguraram em Pelotas os condomínios fechados. Tinha implicância com os muros, como tantos, porque via neles um sintoma da falência da vida em sociedade. No fundo, era uma bobagem minha. Muro é o que mais tem por aí, principalmente os invisíveis.

O motivo de eu simpatizar com o Parque Una é porque, neste bairro, a Idealiza desistiu de construir e vender “refúgio”. O bairro foi pensado no sentido contrário, de fazer frente ao caos urbano, combatê-lo com uma sugestão de como poderia ser o planejamento de uma cidade. Aí está o “pulo do gato” de uma vida, acho: resistir a uma solução defensiva. Contrapor-se a algo ruim ou insatisfatório.

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O Una não tem nada a ver com tombamento, porque o principal patrimônio para eles, embora seja material, um dia morre e é esquecido: as pessoas, seu bem-estar. Se há uma pretensão no negócio, ela não é excludente como um templo ou um velho casarão tombado. Trata-se de coisa diferente, mais ambiciosa, no melhor sentido.

Jornalista e escritor. Editor do Amigos de Pelotas. Ex Senado, MEC e Correio Braziliense. Foi editor-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Atuou como consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Uma vez ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, é autor dos livros Onde tudo isso vai parar e O fator animal, publicados pela Editora Lumina, de Porto Alegre. Em São Paulo, foi editor free-lancer na Editora Abril.

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Brasil e mundo

Antes de Gaga, Madonna já havia aprontado no Rio

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Em seu show no Rio, em maio de 2024, Madonna exibiu numa tela ao fundo do palco imagens de ícones culturais, entre eles Che Guevara e Frida Kahlo. Foi surpreendente que o tenha feito, afinal, ela se apresenta como defensora dos direitos das minorias, inclusive da Queer, como faz Gaga, minoria que se fez maioria em ambos os shows.

Na ocasião, Madonna soou mais inconsequente que Gaga com seu “Manifesto do Caos”.

Os livros contam que o governo cubano, do qual Che fez parte, perseguia homossexuais, chegando a fuzilá-los por isso. Por quê? Porque os considerava hedonistas — indivíduos de natureza subversiva ao regime de exceção. Por serem, para eles, incapazes de controlar seus ardores sensuais e, por conseguinte, de se enquadrar em um regime em que a liberdade não tinha lugar, muito menos de fala.

Já Frida foi amante de Trotsky. E, depois deste ser assassinado no exílio a mando de Stálin, a artista ainda teve a pachorra de pintar um quadro com o rosto de Stálin, exposto até hoje em sua casa-museu, para iração de boquiabertos turistas bem informados sobre os fatos.

Madonna levou R$ 17 milhões do sistema capitalista por um show de um par de horas em que, literalmente, performou. Sem esforço, fingiu que cantava. Playback.

Dizem que artistas, por natureza, são “ingovernáveis”. A visão que eles teriam de vida seria mais importante do que a vida, do que a matéria. Pois há artistas e artistas.

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Madonna é dessas sumidades que a gente não sabe, de fato, o que pensa. Apenas intui, por projeção. Tente lembrar de alguma fala substancial dela. Não lembramos, porque vive da imagem que criou. Vende uma imagem que, no fundo, talvez nem corresponda ao que ela é de verdade.

No fim da trajetória, depois de ganhar a vida, artistas costumam surpreender o público, mostrando sua verdadeira face em biografias. Pelo desconforto de partir com uma máscara mortuária falsa.

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Cultura e entretenimento

O perigo das Gagas da vida

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Ajoelhado na calçada, à moda dos muçulmanos voltados para Meca, porém usando minissaia e rumorosos saltos vermelhos, um homem vestido de mulher berrava com desespero, na tarde de sexta 2, para uma janela vazia do Copacabana Palace, no Rio. Esgarçando-se na reiteração, expelia em golfos: “Aparece, Gagaaa. Gaaaagaaaaa”. Projetava-se à frente ao gritar, recuava em busca de fôlego e voltava a projetar-se.

Como a cantora não deu os ares à janela do hotel, o rapaz, tal qual uma atriz de novela mexicana, a sombra e o rímel escorrendo pelas bochechas, chorou o que pode. Estava cercado por uma multidão que, assim como ele, queria porque queria fincar os olhos na mutante Lady Gaga, uma mistura de mil faces a partir da fusão de Madonna com Maria Alcina, antes de seu show. No país que ama debochar, a cena viralizou.

Multidão muito maior ironizou o drama. Memes correram por todo lado para denunciar o grande número de desempregados no Brasil. Gente com tempo de sobra para chorar, porém pelas razões erradas.

Ocorre que muitos dos presentes à manifestação, como o atormentado rapaz, veem em Gaga um ícone Queer. Uma rainha da comunidade LGBTQIA+, representante global das causas do amor sem distinção, como a pop estimula em seu “Manifesto do Caos”, lido por ela no show. Nele, Gaga prega a “importância da expressão inabalável da própria identidade, mesmo que isso signifique viver em estado de caos interno”. Um manifesto assim, mais do que inconsequente, é temerário.

Como assim caos interior?

Tomado ao pé da letra por destinatários confusos, um manifesto desses pode ser mortificante. Afinal, viver a própria identidade não significa viver sem freios, mas sim encontrar um meio termo entre o desejo e a realidade. Justamente para evitar o caos. Logo, o manifesto é, isso sim, assustador — por haver (sempre há) tantas pessoas suscetíveis de embarcar nessas canoas de alto risco, cheias de remendos destinados a cobrir furos da embarcação. Pobres dos ageiros que, cegos por influência de ídolos de ocasião, avançam pelo lago em condições tão incertas.

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A idolatria… ela é mais antiga do que fazer pipi pra frente e, ao menos no caso dos homens, ainda de pé. Ultimamente as coisas andam um tanto confusas nesse quesito, mas ao menos a adoração se mantém intacta, assim como a veneta dos gozadores, para quem o humor repõe as coisas em proporção, ou seja, em seu devido lugar.

Todos temos cotas de iração por artistas, mas à veneração, eis a questão, se entregam os vulneráveis. O que esses buscam, mais do que a própria vida, é um reflexo (uma sombra?) de suas identidades. Uma projeção material da pessoa que gostariam de ser, não fossem o que são. É aí que mora, num duplex de cobertura, o perigo. O rapaz pensa que Gaga é como ele, só que não.

Não lembro quem disse que aqui é um vale de lágrimas. Mas o é de fato, bem como é um fato que artistas, como políticos, são depositários das nossas esperanças, mesmo que atuem na mais antiga das profissões, anterior à prostituição — a representação —, o primeiro requisito para sobreviver em sociedade, quando não ficar rico, e sem necessariamente excluir, ainda que camuflada, a segunda profissão.

É de se imaginar o rapaz voltando para casa frustrado. É de presumi-lo no sofá, fazendo um minuto de silêncio.

Mas depois se reerguendo.

Não há de ser nada. Amanhã Gaga vai arrasaaar.

Gagaaaaaa.

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